sábado, 4 de outubro de 2008

América Latina/D. ISNARD E PRESIDENTE LUGO, BISPOS E PROFETAS

Selvino Heck *

[ADITAL] Agência de Informação Frei Tito para a América Latina
www.adital.com.br

3 outubro 2008

Adital - A missa do 6º Encontro Nacional do Movimento Fé e Política, novembro de 2007, domingo de manhã, no pátio do Centro de Formação Moquetá em Nova Iguaçu, está começando e eis que aparece D. Clemente Isnard. Com seus 90 anos (hoje 91), sobe devagar os degraus para chegar no altar onde vários bispos e padres participavam da celebração. Ao final, numa curta fala, reporta-se ao Concílio Vaticano II, no qual foi um dos principais teólogos, e ressalta o papel dos leigos na Igreja católica. Os leigos, diz D. Clemente, têm liberdade de se expressar, expressarem sua fé, suas convicções, práticas e militância política, como leigos que expressam sua fé. Depois, D. Clemente subiu ao palco do SESC, onde se realizava o Encontro, e ficou presente todo tempo no painel do qual participava Leonardo Boff.

Antes do Encontro, uma grande polêmica instalou-se no Regional Leste 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), envolvendo a diocese de Nova Iguaçu, patrocinadora do Encontro, sobre se os leigos podiam organizar um Encontro de Fé e Política e sobre a presença e participação de alguns dos painelistas convidados. Vários bispos proibiram seus padres e fiéis leigos de participarem do Encontro. A presença de D. Clemente, com sua autoridade e história na Igreja, serviu de chancela, legitimação e bênção a todos os presentes.

Em meados de 2008, D. Clemente publicou uma carta relatando as peripécias que cercaram a publicação do seu livro "Reflexões de um Bispo sobre as Instituições eclesiásticas", com prefácio de José Comblin. A Editora Paulus editaria o livro, mas o Núncio Apostólico proibiu-a de fazer a publicação. Mas escreve D. Isnard: "Como sou teimoso, consegui uma editora que se interessou pelo assunto do livro e se ofereceu para publicá-lo".

Fernando Lugo assumiu a presidência do Paraguai em agosto. Lugo é ou foi Monsenhor, bispo. Na posse não usou gravata e foi de sandálias, como sempre fez e andou em toda sua vida. Reafirmou seu compromisso com os pobres e trabalhadores, disse que vai fazer a Reforma Agrária e quer renegociar os termos do acordo com o Brasil sobre a energia produzida em Itaipu, feito pelos militares.

Dois fatos, dois momentos. Um bispo publicando um livro para discutir "a nomeação dos bispos, bispos auxiliares e eméritos, o celibato sacerdotal e a exclusão das mulheres do Sacramento da Ordem". Outro (ex)bispo assumindo a presidência de um dos países mais pobres da América do Sul, depois de sessenta anos de domínio de um mesmo e único partido, o Colorado, e dizendo: "O povo deve ser protagonista"; "desejamos um modelo econômico diferente, baseado também na economia camponesa, ou seja, fortalecer as pequenas e médias indústrias, algumas familiares, como já existem; "as mudanças na América Latina estão acontecendo, como no governo de Tabaré Vasquez, com Lula no Brasil, Evo na Bolívia".

D. Clemente Isnard, em entrevista, afirmou: "Eu acho que a discussão sobre esses temas (os do livro, citados acima) somente fará bem. A Igreja é santa e pecadora. E a história mostra que as mudanças demoram séculos para acontecer. Talvez tenhamos que esperar um milênio, mas temos que ser insistentes. Com o livro, quero apenas conscientizar as pessoas". E sobre eventuais polêmicas com o Vaticano, respondeu: "Tudo farei sob a luz do Evangelho, que pediu para não nos comportarmos como fariseus".

O Paraguai esperou 60 anos, depois de muita perseguição política, autoritarismo e ditaduras, escravidão e exclusão da maioria indígena, para ter um governo democrático e de esquerda, à frente um bispo da Teologia da Libertação. A Igreja católica, meio século depois do Concílio Vaticano II, proíbe a publicação de um livro por editora católica de um dos bispos mais reconhecidos internacionalmente no campo litúrgico. Estamos, finalmente no século XXI no Paraguai, respirando ares democráticos e de futuro. E estamos, mais uma vez, respirando os ares conservadores da Igreja católica que, em sua história milenar, tem dificuldade de aceitar o diferente e o novo, de voltar-se sobre si mesma, sua burocracia e seus arcaísmos pouco evangélicos.

Mas quando D. Isnard resolve publicar seu livro por outra editora, quando D. Lugo resolve enfrentar a Igreja e ser candidato, viu-se que há vida. E onde há vida, o novo, o inesperado e a esperança vicejam e acontecem.

O Profeta, em qualquer época, já no Antigo Testamento, não esperou ser abençoado previamente ou receber louvores. Ele veio para proclamar a verdade e a verdade muitas vezes dói. Ele fala na radicalidade da mensagem e da palavra. Ele destrói preconceitos e estruturas viciadas. Ele aponta o amanhã, cria a esperança.

Mudar a sociedade e a cultura política paraguaia exige coragem, compromisso e visão de futuro. Mudar a estrutura da Igreja católica exige profetismo, coragem e testemunho. Mas é assim que a história avança e oferece o inusitado. Quebram-se barreiras, limites, trava-se o bom combate, permanece a fé.

A autoridade e a sabedoria de D. Clemente Isnard permitem a ousadia, e permite a todos os leigos e leigas discutir sua voz, seu espaço, presença e participação na Igreja. A determinação de Fernando Lugo abre a possibilidade do Paraguai, junto com os irmãos dos povos sul e latino-americanos, dar, finalmente, vez e voz aos índios, esses que resistiram e resistem falando guarani, e a todos/as humilhados/as e ofendidos/as da história.

Os profetas existem e acontecem. Viva os profetas!

* Assessor Especial do Presidente

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