3 fevereiro 2012/Vermelho http://www.vermelho.org.br (Brasil)
O jornalista e escritor Ignacio Ramonet diz, em entrevista ao jornal argentino Página/12 que a maioria dos governos da América do Sul cumpre a função dos social-democratas europeus nos anos 50 e que, se não cometerem erros, podem aspirar a um ciclo longo de governo. "A construção do Estado de bem-estar e o aumento do nível de vida acaba com qualquer tipo de recurso para as oposições tradicionais conservadoras. Agora, a população está percebendo como os seus países estão reconstruindo sociedades arrasadas".
Por Martín Granovsky, no Página/12
Nascido em Pontevedra e emigrado com sua família para a França, Ignacio Ramonet dirige o Le Monde Diplomatique em espanhol. Foi um dos animadores do primeiro Fórum em 2001 e é um dos jornalistas que mais percorrem o mundo, observando suas diferentes realidades.
Página/12: Sobre o final do Fórum temos direito de perguntar se foi útil e o que mudou com respeito ao primeiro encontro, de 2001.
Ignácio Ramonet: Quando o fórum foi criado não havia outro governo dos que eu chamo neoprogressistas na América Latina que não fosse o de Hugo Chávez, que inclusive veio ao fórum. No ano seguinte, em 2002, pela primeira vez Chávez se declarou socialista. Também veio Lula quando ainda não era presidente, mas candidato. Agora, ao contrário, os governos neoprogressistas estão implementando as políticas de inclusão social e, ao mesmo tempo, o fórum é menos um fórum dos movimentos sociais. É um fórum no qual se discutiu a crise européia, o movimento dos indignados em geral (os chilenos, Wall Street, etc.) e a questão da memória. A jornada da Flacso na sexta-feira (27/1), o dia do Holocausto, foi uma das atividades centrais, organizada pelo Fórum Social Temático e o Fórum Mundial da Educação.
Até agora esses não eram assuntos do fórum. Os indignados são um tema que não tem mais de um ano, e o debate sobre a memória não havia sido proposto dessa maneira. Dominavam o anti-imperialismo e a denúncia das guerras dos Estados Unidos no Iraque ou no Afeganistão. Está se chegando a um nível diferente. Os governos aqui na América do Sul estão agindo bem em seu conjunto. Mas, cuidado, chega uma nova etapa e é preciso melhorar certos aspectos qualitativos.
Página/12: O que deveria melhorar na América do Sul?
IR: Não acreditar que esta bonança que se está vivendo vai ser duradoura. Depende do êxito norte-americano e europeu e de se há baixa ou não na economia chinesa que afete a potências agrícolas ou de minérios.
Página/12: Um dos pontos é como a América do Sul aproveita sua atual vantagem pelos preços favoráveis dos produtos primários que vende para que outra vez o lucro principal não sejam palácios franceses no meio da pampa úmida.
IR: A economia funciona por ciclos. Na Europa não podemos falar de palácios no meio de nada, mas sim de grandes aeroportos moderníssimos que agora quase não funcionam ou óperas em cidades pequeníssimas. A riqueza passou e nem sempre se sabe aproveitar. Aqui, na América do Sul, a solução é criar mais e mais mercado interno. E mercado interno protegido. E também ampliar os intercâmbios no marco da solidariedade latino-americana. Agora, o mercado latino-americano tem que se articular para que haja massa crítica para todos. Se não, o Brasil se desenvolverá, mas o Uruguai não. Agora que desapareceram 80 milhões de pobres, há uma classe média que consome. O Brasil introduziu o imposto sobre a produção de automóveis frente à China e aumentou essa taxa em 30%. É proteção e é correta.
Página/12: Que discussão mundial nova apareceu no Fórum?
IR: Por agora, muitos constataram que, além das diferentes opiniões, a globalização existe. Se existe, há que analisá-la e descobrir como evitar seus inconvenientes. Em escala mundial, em um debate sobre a crise do capitalismo, uma das opiniões foi que havia que pensar talvez em desglobalizar e reduzir a globalização. Não existe só uma crise econômica. Existe uma crise da política, da democracia, uma crise alimentar, ecológica. Muitos países latino-americanos não estão pensando nas outras crises, em particular na ecológica. Boaventura de Souza Santos sublinhou que não é normal que se acuse comunidades indígenas, chamando-as de "terroristas" quando querem proteger o meio ambiente. As realidades vão mudando. O Movimento dos Sem Terra do Brasil, que antes ocupava terras, não o faz porque não as têm. Qualquer pedaço de terra é soja. E como o MST, quando se assenta, realiza produções ecológicas, é recriminado pelo agronegócio.
Página/12: A discussão ecológica é chave também porque haverá uma cúpula mundial no Rio de Janeiro em junho.
IR: A precaução ecológica é algo que se lembrou e que, em certa medida, faz com que os governos estejam pensando em fazer as coisas certas. Dilma disse que queria dar casas à população. Parece-me muito bem, realmente muito bem. Mas tenhamos cuidado de não chegar ao pragmatismo chinês, que em nome do desenvolvimento destrói o que se oponha a essa idéia, e terminemos entrando sem necessidade em uma grande contradição.
Página/12: Dilma diria: “Está bem, Ignacio, mas eu tenho que governar o Brasil e terminar com a miséria”.
IR: As preocupações ecológica e a social não são excludentes. O Fórum apreciou muito que Dilma tenha decidido vir aqui e não tenha viajado ao Fórum de Davos. Quando Lula veio e disse que depois se dirigiria a Davos, alguém lhe disse: “Não se pode servir a dois senhores de uma vez”. É uma frase bíblica. “Tem que escolher.”
Página/12: Talvez Lula necessitasse ir a Davos porque isso também ajudava na consolidação política de seu governo e hoje o Brasil não necessita de Davos.
IR: Claro, as condições mudam. E o fórum deve mudar também. Antes muitos dirigentes ou presidentes vinham aqui se fortalecer. Chávez e Lula, que já citei. Também Evo Morales, Rafael Correa e Fernando Lugo. Para algumas discussões, uma reunião do fórum pode ter hoje um maior sentido na Europa, para discutir ali mesmo a tremenda crise. No próximo ano está previsto que tenha lugar em um país árabe, porque lá os movimentos sociais não só estão se desenvolvendo, mas também conseguiram ganhar em dois países. E há novas discussões, por exemplo, entre movimentos sociais laicos e movimentos sociais islâmicos.
Página/12: O que poderia ser discutido na Europa?
IR: Na Europa já há algumas discussões que se produziam na América Latina. Uma é a idéia de que a política está gasta e se necessita uma renovação política. De que o sangue e a vitalidade nova virão dos movimentos sociais. Dessa vitalidade pode surgir uma mudança. Este fórum não teria o mesmo sentido se fosse organizado em Madri, Atenas ou Barcelona, onde há sociedades que sofrem e ao mesmo tempo registram em alguns setores grande vontade de mudança. Na América do Sul, por sorte de vocês, existem situações em que a preocupação é seguir crescendo e como fazê-lo melhor.
Página/12: Não há um risco de endeusar os movimentos sociais como fatores de mudança? Se não há construção política, não se diluem?
IR: Sim, é importante ver como se passa de um momento ao outro. Ainda não estamos nessa etapa na Europa, me parece. Ainda não. Ninguém expressa melhor o sofrimento social que o movimento social. Mas se não se dá o passo para a política, todas as grandes crises sempre servem à extrema direita, que aparece sob a forma de movimentos e de partidos anti-sistema. Prometem as mudanças mais radicais, demagógicas, transformacionais. É importante que o sofrimento social se encarne em movimentos que tenham vocação de se envolver na política.
Página/12: Por que ainda não acontece esse passo?
IR: Entre outras coisas, em minha opinião, porque faltam líderes. Até o momento, o movimento social inclusive reprova ter líderes. São muito igualitaristas do ponto de vista do funcionamento democrático. É como a doença infantil do movimento social. Em breve chegará o momento da adolescência ou a maturidade, quando seguramente se gerarão líderes. Não líderes salvadores. Falo de dirigentes democráticos que possam entender o movimento social e ajudá-lo a encontrar respostas. Depois da crise do sistema político venezuelano, no final do que se chamou o “puntofijismo”, teria havido mudanças sem Chávez e o que ele representava? E me faço a mesma pergunta com respeito ao Equador e Correa, à Bolívia e Evo, ao Brasil e Lula, à Argentina e Kirchner.
Página/12: E como funciona a relação entre os líderes, os movimentos e os partidos nesses países da América do Sul?
IR: Minha percepção é que hoje os partidos têm menos influência que há dez anos e os movimentos sociais também porque os governos estão fazendo tudo. Os líderes dos governos conduzem a mudança. Houve uma energia social que produziu a mudança, mas a mudança está tão encarrilhada que às vezes há uma descapitalização da política que paradoxalmente não incomoda muito.
Página/12: Talvez com as construções políticas aconteça o mesmo que com os ciclos econômicos. Talvez devam ou possam ser realizadas antes que o ciclo atual de governos sul-americanos termine.
IR: A função destes governos é muito semelhante a dos governos europeus dos anos 50 que, essencialmente, sendo conservadores ou progressistas, tinham como funções construir o Estado de bem-estar, reconstruir cada país depois da guerra e aumentar o nível de vida da população. Isso lhes deu 40 anos de estabilidade política. Mas terminou. Se os neoprogressistas sul-americanos não cometerem muitos erros, talvez tenham pela frente várias décadas como a social-democracia nórdica. Hoje melhoram estruturas, o nível de vida, criam trabalho. Não é por acaso que são os governos neoprogressistas os que estão trabalhando bem. Assim aconteceu com os velhos partidos social-democratas. Além disso, a construção do Estado de bem-estar e o aumento do nível de vida acaba com qualquer tipo de recurso para as oposições tradicionais conservadoras. Agora a população percebe como os países reconstroem sociedades arrasadas.
As favelas eram pensadas como uma fatalidade. Para a direita, era assim porque é assim. Mas a força da direita desapareceu, e também o elemento militar. As leis da memória são as que devem responsabilizar – sem vingança, com documentos e base histórica sólida – e estabelecer responsabilidades. Não vingar-se, mas terminar com a impunidade. Apesar de que o que vou dizer parece escandaloso, estamos no momento mais fácil da América do Sul. Se não cometerem erros e fizerem uma gestão tranquila, os governos de sinal neoprogressista podem ficar no poder muito tempo. Por isso é preciso pensar bem as sucessões políticas. Na Argentina isso funcionou bem. No Brasil, o que fez Lula foi exemplar. É uma lição. E por isso hoje Dilma tem mais aprovação popular do que Lula tinha em seu primeiro ano de governo.
(*) Ignacio Ramonet é autor, entre outras obras, de "Fidel Castro: biografia a duas vozes" (Boitempo, 2006).
Fonte: Página/12 Tradução: Libório Junior
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