sábado, 23 de junho de 2007

Banco do Sul / Um banco pelos direitos humanos?

Le Monde Diplomatique / Edição brasileira / junho 2007

FINANÇAS

Em meio à crise do FMI e do Banco Mundial, países latino-americanos preparam-se para lançar o Banco do Sul. Seu caráter ainda não está definido, mas algumas propostas farão dele, se aprovadas, uma instituição revolucionária

Eric Toussaint, Damien Millet

Punido! Como poderia o todo-poderoso Banco Mundial aceitar, em 2005, que o jovem ministro equatoriano da economia, Rafael Correa, tomasse a decisão de revisar a utilização dos recursos petroleiros, reduzir o ritmo do reembolso da dívida e aumentar as despesas sociais, sob pretexto de que o país estava passando por uma crise político-social de extrema gravidade? O banco suspendeu imediatamente um empréstimo de 100 milhões de dólares prometido ao Equador e, com a ajuda de alguns amigos, ocupou-se seriamente da carreira do ministro em questão. “Os donos do petróleo, os Estados Unidos, o Fundo Monetário Internacional [FMI], o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento [BID] pressionaram o presidente [Carlos Mesa]”, contaria Rafael Correa mais tarde. “Eu perdi a sua confiança, seu apoio [1]”. Ao se ver desautorizado, o jovem economista optou então por se demitir.

Eleito presidente da República, em 3 de dezembro de 2006, Correa ainda mantém vivo o episódio, na memória, nos seus mínimos detalhes — inclusive as atitudes de desprezo com a soberania do país. Em 20 de abril de 2007, num gesto espetacular, ele mandou declarar persona non grata no Equador o representante do Banco Mundial, Eduardo Somensatto. Além disso, confrontado com uma dívida pública de US$ 10,5 bilhões, decidiu que a parte do orçamento dedicada ao seu reembolso cairá de 38%, em 2006, para 11,8% em 2010. Alguns dias depois, a Venezuela anunciou que está deixando o FMI e o Banco Mundial. Já a Bolívia divulgou que não reconhece mais a autoridade do Centro Internacional para a Solução dos Litígios relativos aos Investimentos (Cirdi), um dos instrumentos do Banco Mundial.

Desde os anos 1950, as intervenções do Banco Mundial e do FMI na América Latina têm sido influenciadas pelas prioridades da política externa de Washington. As instituições de Bretton Woods proporcionaram sustentação ao ditador nicaragüense Anastásio Somoza durante cerca de trinta anos, até a sua derrubada em 1979 [2]. Na Guatemala, em 1954, essas instituições boicotaram o governo progressista de Jacobo Arbenz, e se apressaram a apoiar a junta militar que o derrubou.

FMI e Banco Mundial: um currículo de saque e apoio a ditaduras
Na América do Sul, as determinações de Bretton Woods sabotam os regimes democráticos que empreendem reformas destinadas a reduzir as desigualdades. No Brasil, a partir de 1958, fizeram oposição ao presidente Juscelino Kubitschek, que recusou as condições determinadas pelo FMI, e boicotaram o seu sucessor, João Goulart, quando esse anunciou uma reforma agrária e a nacionalização do petróleo, em 1963. Em contrapartida, a partir da instalação do governo militar, em abril de 1964, o FMI e o Banco Mundial apoiaram o governo. Fizeram o mesmo no Chile, em setembro de 1973, depois da derrubada e da morte de Salvador Allende. Em março de 1976, na Argentina, o FMI ofereceu ajuda à ditadura do general Jorge Videla. Em 2002, o Fundo foi a primeira instituição (junto com os Estados Unidos e a Espanha, então governada por José Maria Aznar) a oferecer seus serviços ao breve governo que assumiu o poder em decorrência da derrubada do presidente venezuelano Hugo Chávez.

Em toda parte, as classes dominantes locais encontraram nas instituições de Bretton Woods um apoio à sua resistência às reformas. Vale acrescentar que o Chile de Pinochet e a Argentina de Videla funcionaram como verdadeiros laboratórios para as políticas neoliberais que, sob formas adaptadas, seriam aplicadas mais tarde nos países mais industrializados — começando pela Grã-Bretanha de Margaret Thatcher, a partir de 1979, seguida pelos Estados Unidos de Ronald Reagan, depois de 1981.

O Banco Mundial e o FMI incentivaram deliberadamente a América Latina a se endividar. Entre 1970 e 1982, o conjunto da dívida externa pública da região passou de US$ 16 bilhões para US$ 178 bilhões [3]. Em 1982, quando a crise da dívida tomou conta da região, as duas instituições utilizaram a arma do super-endividamento para impor as políticas que seriam codificadas mais tarde no âmbito do Consenso de Washington: ajustes estruturais, privatizações, abertura econômica, abandono dos controles sobre o câmbios e os movimentos de capitais, redução das despesas sociais, aumento das taxas de juros locais etc. Os capitais que haviam afluído para a região, sob a forma de empréstimos, voltaram a migrar rumo aos países industrializados como reembolso da dívida e fuga de capitais.

Numa nova conjuntura, espaço para posturas independentes
Ao tomarem o lugar das juntas militares, a partir da segunda metade da década de 1980, os governos democráticos aplicaram docilmente as instruções neoliberais. O resultado dessa política é devastador. Da revolta popular de abril de 1984, na República Dominicana, ao “argentinazo” de dezembro de 2001 contra o governo de Fernando de la Rua, passando pelo “caracazo” de 27 de fevereiro de 1989, contra o presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez, os motins se multiplicam. A rejeição do Consenso de Washington e dos seus instrumentos acabou provocando uma guinada para a esquerda a partir da eleição de Hugo Chávez à presidência da Venezuela, em 1998.

Depois da derrubada do presidente Fernando de la Rua, em dezembro de 2001, as autoridades argentinas, sob a pressão do descontentamento popular, desafiaram abertamente o FMI e o Banco Mundial ao suspenderem, até março de 2005, o pagamento da dívida pública externa junto aos credores privados e ao Clube de Paris. Embora os sucessivos governos peronistas de Rodríguez Saa, Eduardo Duhalde e Nestor Kirchner evitem a ruptura direta com as instituições de Bretton Woods (que seguem recebendo os seus pagamentos…), também contribuem para enfraquecê-las. Demonstram que é possível suspender o pagamento da dívida, dar um novo impulso ao crescimento econômico, e impor um acordo aos credores. Estes aceitaram, numa proporção de 76%, uma redução de mais da metade das quantias reclamadas.

A partir de 2005, uma mudança conjuntural da situação econômica mundial alterou, de maneira favorável, as relações da maioria dos países em desenvolvimento com seus credores. As cotações das matérias-primas e de certos produtos agrícolas tendem a subir, enquanto as taxas de juros e os prêmios de risco pagos para obter empréstimos sofrem uma queda histórica. Na América Latina e Caribe, o aumento das exportações permite ampliar as reservas em dólares e outras divisas: entre 2002 e 2007, elas passaram de US$ 157 bilhões para mais de US$ 350 bilhões. Vários governos -– Argentina, Brasil, México, Uruguai, Venezuela, além da Tailândia, Indonésia e Coréia do Su — tiraram proveito da situação para saldar as suas pendências com o FMI.

Alguns dos movimentos favoráveis ao cancelamento da dívida criticam os governos, afirmando que esta atitude “legitima” a diva e desperdiça capitais que seriam úteis para conduzir políticas sociais. Os governantes rebatem, afirmando que tais reembolsos lhes permitem recuperar liberdade em relação a uma instituição que impõe políticas impopulares.

O risco: esterilizar as reservas, emprestando dinheiro aos ricos
O que os governos têm feito, até agora, na sua maioria, com as suas reservas de câmbio? Depois de utilizar uma parte para reembolsar certos organismos internacionais, aplicam o restante sob a forma de bônus do Tesouro norte-americanos, ou depósitos em bancos dos Estados Unidos (e, marginalmente, de outros países industrializados). Emprestam, portanto, o dinheiro público do Sul para potências do Norte, em particular para o principal país que os domina.

Além disso, a aplicação das reservas sob forma de bônus do Tesouro, sejam norte-americanos ou de outros países, pode se combinar, surpreendentemente, com a captação de novos empréstimos no mercado interno ou internacional. A remuneração das reservas aplicadas em bônus dos Tesouros estrangeiros ou em bancos privados é sempre inferior aos juros pagos sobre os novos empréstimos. O desfalque amplia-se porque os Estados Unidos os reembolsam as aplicações em dólares, moeda que tem sofrido uma desvalorização constante, ao longo dos últimos anos.

Deter reservas importantes em divisas fortes desencadeia outro mecanismo perverso: os bancos centrais dos países que se encontram nesta situação compram os dólares obtidos pelos exportadores, oferecendo em troca títulos da dívida pública. E remuneram estes papéis com altas taxas de juros, o que representa um custo suplementar para o Tesouro público [4].

Longa costura política leva a Assução, onde surgirá o novo banco
A relativa abundância de reservas à disposição dos governos da América Latina trouxe mais água para o moinho do presidente Chávez, que vem propondo, há alguns anos, a criação de um fundo humanitário internacional e, desde 2006, a fundação de um Banco do Sul. Ao anunciarem, em fevereiro de 2007, o nascimento dessa instituição, a Argentina e a Venezuela deram um passo decisivo para a sua viabilização. Sem demora, a Bolívia, o Equador e o Paraguai associaram-se à iniciativa. O Brasil, que se manteve hesitante durante três meses, acabou assinando a declaração de Quito de 3 de maio, por ocasião de uma reunião de cúpula dos ministros das Finanças da Argentina, da Bolívia, do Brasil, do Equador, do Paraguai e da Venezuela. Uma cúpula que reunirá os ministros da Economia desses países, a ser realizada em Assunção, em 28 e 29 de junho, deverá marcar oficialmente o lançamento do Banco do Sul.

Várias opções ainda são tema de discussões, mas um consenso parece ter se desenhado em relação a vários pontos. Esse organismo financeiro reunirá, ao menos, esses seis países da América do Sul (a porta permanecerá aberta para os outros) e terá por função financiar o desenvolvimento da região. Existe, também, vontade de criar um fundo monetário de estabilização [5]. Já existe um Fundo Latino-Americano de Reserva (FLAR), do qual fazem parte cinco países andinos (Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela) e um país da América Central, a Costa Rica. Essa entidade poderia ser transformada ou, caso isso se revele impossível, um novo fundo poderá surgir. Seu objetivo seria de fazer frente a ataques especulativos e a outros choques externos por meio de um caixa comum, no qual os países-membros compartilhariam uma parte das suas reservas de câmbio.

Trata-se, portanto, de dispensar os serviços do FMI, com uma ambição suplementar: implantar uma unidade de conta que poderia, um dia, desembocar numa moeda comum. Ou seja, criar uma divisa equivalente ao que era o ECU europeu antes da criação do euro. Atualmente, as operações comerciais entre países da América do Sul são pagas em dólares. Mas Argentina e Brasil acabam de afirmar a intenção de pagar suas transações mútuas — um valor anual de US$ 15 bilhões — em pesos argentinos e em reais.

As propostas que podem significar grande inovação
Durante a reunião de Quito, a delegação do Equador apresentou uma concepção revolucionária do Banco do Sul (e do Fundo). Segundo seus autores, a instituição deveria funcionar a partir de uma base democrática, diferentemente dos modos de funcionamento do Banco Mundial, do FMI e do BID. Seria um instrumento encarregado, entre outros, de zelar pela aplicação dos tratados internacionais relativos aos direitos humanos, sociais e culturais, ao passo que o Banco Mundial considera não ter obrigação nenhuma em relação a esses tratados. O Banco do Sul deverá financiar projetos públicos, enquanto as instituições existentes privilegiam o setor privado.

Além do mais, se os chefes de Estado chegarem a um acordo a esse respeito, o Banco do Sul deverá estar fundamentado no princípio de “um país, um voto”. Atualmente, no Banco Mundial, FMI e BID, o direito de voto dos países depende da sua contribuição financeira inicial. Os Estados Unidos são detentores, por si só, de mais de 15% dos votos, o que lhes confere um direito de veto de fato. Além disso, os dirigentes e funcionários do Banco do Sul seriam responsáveis perante a Justiça, diferentemente dos do Banco Mundial, protegidos por imunidade total, suspensa apenas se a instituição o desejar. Os arquivos pertenceriam ao domínio público (a regra contrária está em vigor no FMI e no Banco Mundial). Por fim, o novo estabelecimento financeiro não se endividaria no mercado dos capitais. O seu capital seria formado pelos países-membros, que o financiariam por meio de uma contribuição inicial, de empréstimos, e ainda por meio de tributos – por exemplo, sobre transações com capital especulativo, do tipo Tobin. [6]

Ainda é cedo para conhecer o destino que a proposta terá. Os governos brasileiro e argentino mostram-se mais interessados em criar um banco que venha reforçar suas grandes empresas privadas ou de economia mista, no âmbito de um bloco econômico e político a ser construído segundo o modelo de uma União Européia dominada pela lógica capitalista. Mas o debate ainda não foi concluído. De qualquer forma, não há como negar: na América Latina, o FMI e o Banco Mundial não ditam mais a lei.

Tradução: Jean-Yves de Neufville / jeanyves@uol.com.br

[1] Maurice Lemoine, “Nos bastidores da vitória de Rafael Correa”, Le Monde Diplomatique-Brasil, janeiro de 2007.
[
2] Para uma apresentação detalhada do apoio do Banco Mundial e do FMI às ditaduras, ler Eric Toussaint, Banco Mundial: o Golpe de Estado permanente. A agenda oculta do Consenso de Washington, CADTM-Syllepse, Liège-Paris, 2006.
[
3] Banco Mundial, Global Development Finance, Washington D.C., 2006.
[
4] Ibid.
[
5] A adesão da Venezuela não está garantida porque, inicialmente, Hugo Chávez queria que o Banco do Sul acumulasse as funções de banco de desenvolvimento e de fundo monetário de estabilização.
[
6] Este tributo incidiria sobre as transações envolvendo câmbio, efetuadas nos seis países

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