sábado, 23 de março de 2013

VENEZUELA: O FUTURO IMEDIATO

ODiario.info http://www.odiario.info (Portugal)

Tariq Alí*

Os bolivarianos propuseram um programa político que desafiou o consenso de Washington e os seus postulados de neoliberalismo em casa e guerras no estrangeiro. Foi essa a razão principal do denegrimento de Chávez, que continuará muito para além da sua morte. Os seus inimigos não o deixarão descansar em paz. ¿E os seus partidários? Eles, os pobres do continente e de outros lugares, vê-lo-ão como um líder político que, contra muitas adversidades, prometeu e entregou direitos sociais; como alguém que lutou e venceu.

Uma vez perguntei-lhe se preferia os inimigos que o odiavam porque sabiam o que fazia, ou os que deitavam espuma pela boca por pura ignorância. Rindo, disse que preferia os primeiros, porque lhe faziam sentir que estava no caminho correcto. A morte de Hugo Chávez não chegou de surpresa, mas não é menos difícil de aceitar por isso. Perdemos um dos gigantes políticos da era pós-comunista. A Venezuela, cujas elites estavam afundadas na corrupção em enorme escala, era considerada um enclave seguro de Washington, e no outro extremo estava a Internacional Socialista. Poucos pensavam naquele país antes das vitórias de Chávez. Mas logo em 1999 todos os media importantes do Ocidente se sentiram obrigados a enviar um correspondente. Desde então todos têm dito o mesmo (supunha-se que o país estava à beira de uma ditadura de recorte comunista); teria sido mais económico se tivessem unificado os seus recursos.

Conheci-o em 2002, pouco depois do fracasso do golpe militar instigado por Washington e Madrid, e depois disso vi-o em numerosas ocasiões. Durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre, Brasil, pediu para me ver e disse-me:¿Por que é que não tem ido à Venezuela? Venha em breve. E assim fiz. O que me atraiu foi a sua brusquidão e coragem. Aquilo que frequentemente parecia um mero impulso tinha na realidade sido cuidadosamente meditado e depois, dependendo da resposta, era ampliado pelas suas erupções espontâneas. Num momento em que o mundo se tinha calado, em que era necessário buscar arduamente para encontrar alguma diferença entre o centro-direita e o centro esquerda, e os seus políticos se tinham convertido em homens-máquina descarnados, obcecados com ganhar dinheiro, Chávez iluminou o panorama político. Parecia um toiro indestrutível, que falava durante horas ao seu povo com voz cálida e sonora, e uma feroz eloquência que tornava impossível permanecer indiferente. As suas palavras tinham uma pasmosa ressonância. Os seus discursos estavam tecidos de homilias, de história continental e nacional, de citações do líder revolucionário do século XIX e presidente venezuelano Simón Bolívar, pronunciamentos sobre o estado do mundo e canções. A nossa burguesia envergonha-se de cantar em público. ¿Vocês ficam incomodados? perguntava aos que escutavam. A resposta era um não estentóreo. Então pedia-lhes que se unissem ao canto e murmurava: Mais alto, para que possam ouvi-los no oriente da cidade.

Una vez, antes de um desses comícios, olhou-me e disse: Hoje parece cansado. ¿Resistirá toda a tarde? Depende de quanto tempo vá falar, respondi. Prometeu que seria um discurso breve. Menos de três horas.

Tal como é reconhecido aos seus partidários, os bolivarianos propuseram um programa político que desafiou o consenso de Washington e os seus postulados de neoliberalismo em casa e guerras no estrangeiro. Foi essa a razão principal do denegrimento de Chávez, que continuará muito para além da sua morte.

Os políticos como ele tornaram-se inaceitáveis. O que mais odiava era a desdenhosa indiferença dos políticos convencionais da América do Sul perante o seu próprio povo. A elite venezuelana é notoriamente racista. Considerava o presidente eleito do seu país ordinário e incivilizado, um zambo, mescla de africano e índio, em quem não se podia confiar. Os seus partidários eram apresentados como macacos nas cadeias da televisão privada. Colin Powell teve que dar uma reprimenda pública à embaixada de Estados Unidos em Caracas por dar uma festa na qual Chávez foi retratado como um gorila.

¿Surpreendeu isso Chávez? Não, disse-me com semblante sombrio. Eu vivo aqui, conheço-os bem. Uma das razões porque muitos nos alistamos no exército é porque outras vias estão bloqueadas. Mas agora já não. Ele alimentava poucas ilusões; sabia que os inimigos locais não se movimentam e conspiram sem rede. Por detrás deles actuava o Estado mais poderoso do mundo. Acreditou por momentos que Obama seria diferente; o golpe de Estado em Honduras livrou-o dessa ideia.

Tinha um meticuloso sentido do dever perante o seu povo. Ele era um deles. Ao contrário dos social-democratas europeus, nunca acreditou que das corporações e dos banqueiros pudesse vir benefício algum para a humanidade, e disse-o desde muito antes do colapso de Wall Street em 2008. Se tivesse que colocar-lhe uma etiqueta, diria que era um socialista democrata, muito afastado de qualquer impulso sectário e que repudiava a conduta de varias seitas de extrema-esquerda, obcecadas consigo mesmas, e a cegueira das suas rutinas. Disse-me isso na primeira vez que nos vimos.

No ano seguinte, em Caracas, interroguei-o mais a fundo sobre o projecto bolivariano. ¿Que poderia alcançar-se? Foi muito claro, muito mais que alguns dos seus partidários, excessivamente entusiastas: “Não creio nos postulados dogmáticos da revolução marxista. Não aceito que vivamos num período de revoluções proletárias. Tudo isso deve ser revisto; a realidade diz-nos isso cada dia que passa. ¿Aspiramos hoje na Venezuela à abolição da propriedade privada ou a uma sociedade sem classes? Não o creio. Mas se me dizem que perante essa realidade não podemos fazer nada pelos pobres, pela gente que com o seu trabalho fez rico este país – e não esqueçamos que parte dele foi trabalho escravo –, então digo: ‘Aqui separamo-nos’. Nunca aceitarei que não possa haver redistribuição da riqueza na sociedade. As nossas classes altas nem sequer gostam de pagar impostos: essa é uma das razões porque nos odeiam. Dissemos: ‘devem pagar impostos’. Creio que é melhor morrer na batalha do que levantar um estandarte muito revolucionário e muito puro e não fazer nada… Essa postura sempre me pareceu muito conveniente, uma boa desculpa… Tentemos fazer a revolução, entrar em combate, avançar um pouco, ainda que seja apenas um milímetro, na direcção correcta, em vez de sonhar em utopias.”

Recordo que uma vez me sentei ao lado de uma anciã de roupas modestas, num dos seus comícios. Ela fez-me perguntas acerca dele. ¿Que me parecia? ¿Actuava bem? ¿Falava demasiado? ¿Não era às vezes demasiado áspero? Defendi-o, e ela mostrou-se aliviada. Era a sua madre, preocupada em que talvez não o tivesse educado bem. Desde criança procurámos que lesse livros. Essa paixão pela leitura permaneceu nele. A história, a ficção e a poesia eram os amores da sua vida: “Tal como eu, Fidel dorme pouco. Às vezes lemos a mesma novela. Liga-me às 3 da manhã e pergunta: ‘Bom, ¿terminaste? ¿Que te pareceu?’ E passamos outra hora argumentando.”

Foi o encanto da literatura que o levou em 2005 a celebrar, de forma única, o 400º aniversário da grande novela de Cervantes. O ministério de cultura reimprimiu um milhão de exemplares do Quixote distribuiu-os gratuitamente a um milhão de lares pobres, mas agora alfabetizados. ¿Gesto quixotesco? Não: a magia da arte não pode transformar el universo, mas pode abrir a mente. Chávez confiava em que, na altura ou mais tarde, o livro seria lido.

A proximidade com Castro tem sido descrita como uma relação entre pai e filho. Em parte é verdade. No ano passado juntou-se uma enorme multidão no exterior do hospital em Caracas onde se supunha que o presidente se encontrava em recuperação do tratamento contra o cancro, e os seus cantos tornaram-se cada vez mais ruidosos. Chávez ordenou que fossem colocados amplificadores no terraço e dirigiu daí uma mensagem à multidão. Em La Havana Castro ficou pasmado ao observar essa cena via Telesur. Fez uma chamada telefónica para o director do hospital: Fala Fidel Castro. Você deveria ser despedido. Faça com que volte para a cama; transmita-lhe que sou eu que o digo.

Acerca dessa amizade, Chávez via Castro e o Che Guevara num contexto histórico. Eram os herdeiros no século XX de Bolívar e seu amigo António José de Sucre. Procuraram unir o continente, mas foi como lavrar no mar. Chávez aproximou-se mais desse ideal do que o quarteto que tanto admirava. Os seus êxitos na Venezuela desencadearam uma reacção continental: Bolívia e Equador obtiveram vitórias. Brasil, com Lula e Dilma, não seguiu o seu modelo social, mas não permitiu que o Ocidente o colocasse em confronto com a Venezuela. Os jornalistas ocidentais tinham um refrão: Lula é melhor que Chávez. Só no ano passado Lula declarou que apoiava Chávez, cuja importância para o nosso continente jamais devia ser subestimada.

A mais divulgada imagem de Chávez no Ocidente era a de um caudilho opressor. Se correspondesse à verdade, gostaria que houvesse mais do mesmo género. A Constituição bolivariana, combatida pela oposição, pelos seus jornais e canais de televisão e pela CNN local, para além dos seus patrocinadores ocidentais, foi aprovada pela grande maioria da população. É a única constituição do mundo que prevê a possibilidade de revogar o mandato a um presidente por meio de um referendo que será convocado caso seja recolhido um número suficiente de assinaturas. A oposição, que é consistente apenas no seu ódio por Chávez, tentou utilizar este mecanismo em 2004 para o depor. Embora muitas das assinaturas fossem de pessoas falecidas, o governo venezuelano aceitou o desafio.

Eu estive em Caracas na semana anterior à votação. Quando me reuni com ele no Palácio de Miraflores, fazia com grande pormenor uma revista das sondagens de opinião. Poderia ser uma eleição disputada. ¿E se perde? Perguntei-lhe. Renuncio, respondeu sem vacilar. Ganhou.

¿Alguma vez se cansava? ¿Se deprimia? ¿Perdia confiança? Sim, respondeu. Mas não foi pelo golpe de Estado nem pelo referendo. O que o preocupava era a greve organizada pelos corruptos sindicatos petroleiros e apoiada pelas classes médias, porque afectaria toda a população, em especial os pobres: “Dois factores ajudaram-me a sustentar o ânimo. O primeiro foi o apoio que mantemos em todo o país. Cansei-me de estar sentado no meu gabinete. E assim, saí com um guarda de segurança e dois camaradas, para ouvir as pessoas e respirar um melhor ar. A sua resposta comoveu-me muito. Uma mulher aproximou-se e disse-me: ‘Chávez, siga-me, quero mostrar-lhe algo’. Segui-a até à sua diminuta habitação. Dentro, o seu marido e filhos esperavam que a sopa ficasse cozinhada. ‘Olhe o que uso como combustível… a base da cama. Amanhã queimarei os pés, depois a mesa, depois as cadeiras e as portas. Sobreviveremos, mas não se dê agora por vencido.’ Quando vinha de saída os jovens das imediações aproximavam-se para me apertar a mão. ‘Podemos viver sem cerveja’, diziam. ‘Acabe com esses filhos da puta.’”

¿Qual era a realidade interna da sua vida? O conjunto de inclinações emocionais e intelectuais de qualquer pessoa com certo nível de inteligência, carácter e cultura nem sempre é visível para todos. Chávez era divorciado, mas o afecto que manifestava aos seus filhos e netos jamais esteve em dúvida. A maioria das mulheres que amou, e foram bastantes, descreviam-no como um amante generoso, inclusivamente muito depois de se terem separado.

¿Que país deixa? ¿Um paraíso? Claro que não: ¿como poderia sê-lo, dada a escala dos problemas existentes? Mas deixa uma sociedade muito modificada, na qual os pobres sentem que têm una participação importante no governo. Não há outra explicação para a sua popularidade. A Venezuela está dividida entre os seus partidários e os seus detractores. Morreu invicto, mas as grandes provas estão por vir. O sistema que criou, uma democracia social assente em mobilizações de massas, necessita de avançar mais. ¿Estarão os seus sucessores à altura da tarefa? Em certo sentido, é essa a prova final da experiência bolivariana.

De algo podemos estar seguros. Os seus inimigos não o deixarão descansar em paz. ¿E os seus partidários? Eles, os pobres do continente e de outros lugares, vê-lo-ão como um líder político que, contra muitas adversidades, prometeu e entregou direitos sociais; como alguém que lutou e venceu.

*Tariq Alí é autor de The Duel: Pakistan on the Flightpath of American Power (O duelo: o Paquistão na rota de voo do poder estadunidense).

Pode ser contactado em mailto:tariq.ali3@btinternet.com Este artigo foi originalmente publicado em The Guardian e é reproduzido com a autorização do autor.

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