segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Venezuela/O FENÓMENO HUGO CHAVEZ EM CONTEXTO ECONÓMICO

1 dezembro 2012/Odiário.info http://www.odiario.info (Portugal)

O problema hoje não é tanto o renascimento da economia mas a sua transformação, ou seja, mover-se de um capitalismo assente nas rendas e importador para um modelo de exportação que possa explorar as vantagens da entrada da Venezuela no Mercosul. Mas com base no desenvolvimento de novas formas de propriedade social que incluam, mas também ultrapassem, a propriedade privada e a do Estado.

Um pesquisador do Centro Internacional Miranda de Caracas analisa o fenómeno Hugo Chavez em contexto económico. Formado em economia pela Universidade de Havana, Victor Alvarez foi ministro da Indústrias e Minas do governo de Hugo Chávez e director PDVSA. Na sua actividade como docente e investigador no Centro Internacional Miranda em Caracas, coordena uma equipa de estudo sobre novos modelos de produção. No seu último livro, Chaves para a Industrialização Socialista, propõe um novo tipo de desenvolvimento industrial baseado em diferentes formas de propriedade social nas mãos dos trabalhadores e das comunidades, sem qualquer tipo de mediações burocráticas. Aqui procura identificar as diferentes formas de intervenção eficaz do estado para orientar os processos que considera não poderem estar sujeitos às forças de mercado.

Hugo Chavez ganhou pela primeira vez as eleições em Dezembro de 1998. Em que contexto económico chega ao poder?

Chavez começa a governar um país com uma economia devastada por políticas neo-liberais, que foram implementadas desde o final dos anos 80 e ao longo da década de 90, causando a falência em massa de pequenas e médias empresas que não puderam suportar a concorrência das importações, que começaram a fazer-se em virtude da abertura indiscriminada que o governo de Carlos Andrés Pérez aplicou. Além disso, o país começou a sofrer as consequências da política errada daquele governo em relação petróleo. A Venezuela deixou de cumprir a auto-regulação na produção de petróleo acordada pelos países da OPEP, ou seja, produziu muito acima das quantidades acordadas, inundando o mercado mundial de petróleo, cujo preço caiu para 8 dólares por barril. Os tecnocratas que dirigiam a PDVSA [1], em vez de gerir a empresa em função do interesse nacional, fizeram-no em função do interesse das multinacionais.

O resultado foi que as receitas fiscais do Estado venezuelano caíram vertiginosamente?

Na Venezuela, as receitas fiscais sempre foram marcadas pela receita da PDVSA. Os empresários privados têm contribuído pouco para financiar os gastos públicos. Essa queda das receitas do petróleo deixou o estado sem recursos e depois começa a privatização da saúde e da educação. O estado perde força e são privatizadas as principais empresas, como as de telecomunicações, metalurgia e aviação.

E a indústria do petróleo vai por esse caminho?

Os programas de abertura petrolífera na PDVSA foram a manifestação clara do processo de privatização. Foram feitos acordos de exploração com as multinacionais do petróleo, que traziam à Venezuela 1% de seus direitos, ou seja, eliminou-se praticamente a receita do estado. Com a reforma dessas leis, levada a cabo pelo governo bolivariano, os direitos passaram primeiro para 16,5% e agora 33%.

Qual foi o custo social da antiga política petrolífera?

A crise económica resultou num aumento do desemprego e da pobreza. Chegámos a ter 16% de desemprego e a pobreza em torno dos 60%. Chavez herdou uma verdadeira bomba social que havia já rebentado no Caracazo [2] e permanecia latente. O desmantelamento do Estado retirou toda a capacidade de investimento público. Não havia incentivos de crédito para a agricultura ou produção industrial. E o governo não tinha recursos para reverter a situação com o petróleo a 8 dólares por barril. Então, uma das primeiras medidas de Chavez foi revigorar a OPEP [3], para os seus membros começarem a produzir menos e a vender mais caro.

Qual era a situação de pobreza em 1999, quando Chavez subiu ao poder?

Começou com pobreza superior a 60% e quase 50% das pessoas empregadas trabalham no “sector informal”. Esta era a expressão de um sistema produtivo que estava a cair aos bocados. Hoje, a taxa de desemprego é de 7% e, se juntar a isso tudo o que é gratuito e que o Estado tem garantido a partir das missões sociais de alimentação, educação, saúde e habitação, a situação é diferente. Isto deve-se a programas como o “Barrio Adentro”, com milhares de médicos cubanos que servem os pobres, e o surgimento de novas universidades que colocaram a Venezuela em quarto lugar no mundo em número de habitantes com estudos superiores, proporcionalmente. Tudo isso reduziu a pobreza de uns 62% para 33% e a extrema pobreza de 29% para menos de 10%.

De acordo com um estudo da Comissão Económica para a América Latina (CEPAL) a pobreza total, durante o governo de Chavez, até 2010, foi reduzida a metade, tornando a Venezuela o segundo país no continente que mais a reduziu, depois do Equador.

A percentagem de pessoas em situação de pobreza, ou seja, com um nível de rendimento que é apenas suficiente para satisfazer as necessidades básicas, diminuiu de 62,09% para 33% entre 1999-2012. A percentagem de fogos e pessoas que vivem em situação de extrema pobreza, ou seja, incapazes de satisfazer as necessidades básicas, passou de 29,75% para 8,9% (INE, 2012). O desemprego caiu de 16% para 7%. Por isso, na Venezuela, houve uma mudança revolucionária, entendendo por revolução uma mudança profunda e rápida. Algo que levou 25 a 50 anos noutros países, aqui foi feito em seis ou sete anos, a partir de 2004, quando começam a ter lugar as missões sociais, ao terminar a crise política, com o referendo de 2004. A partir desse momento Chavez recupera a governabilidade e as coisas começam a melhorar. Assim, o marco não é o ano de 1999, quando o presidente assume o poder, mas em 2004, quando começam as missões e se estabilizam os preços do petróleo.

Na Europa estão a aplicar cortes nos gastos sociais, políticas que foram aplicadas na América Latina, com resultados catastróficos. E o partido do governo da Venezuela acusou a oposição de propor um regresso aos anos 90.

O programa que apresentaram à Comissão Nacional Eleitoral revela isso. Estes programas de ajuste neo-liberais têm em comum não valorizar as pessoas como cidadãos para com quem o estado tem obrigações, vêem-nos como clientes e consumidores. Por isso, propõem a privatização de activos públicos, saúde e educação. Uma das principais críticas desse modo de pensar é o gasto excessivo que teria o Estado. Existe uma palavra que é inaceitável para eles, que é falar de subsídio. Para o interesse dos grandes grupos económicos, os serviços públicos deveriam ser mercadoria. Um dos intentos da direita é reduzir ao mínimo o papel do estado, limitando o investimento público e eliminar as regras impostas à economia para evitar o seu desregulamento. Pretendem eliminar o controlo dos preços dos alimentos e o controlo do câmbio.

Qual é o programa de Chavez?

O seu programa reivindica a intervenção do estado para guiar o desenvolvimento económico e social do país, reconhecendo os venezuelanos como cidadãos com direito à saúde, educação, alimentação, trabalho e habitação. Com base nisso se resgatou a riqueza petrolífera do país. E através do investimento social dessa riqueza se procura assegurar a satisfação desses direitos. Isso assinala uma diferença radical com os princípios que regem o programa da direita, que estão a esconder, por ser é tão anti-popular o seu plano de quebrar o investimento público e eliminar o controlo que favoreça a maioria. Se divulgassem isso, apenas teriam resposta nos sectores empresariais e internacionais. Uma das propostas da direita é o de incorporar 400 000 barris de petróleo por ano na produção nacional. Isso seria muito grave, porque haveria um colapso dos preços do petróleo, que resultaria numa redução considerável de divisas para o país.

Como financiar programas sociais, nesse caso?

Eu respondo com outra pergunta: a direita vai aumentar os impostos aos grandes empresários? O mais provável é que deixassem morrer as missões e acabassem subindo o IVA, um imposto impopular que todos nós pagamos independentemente do nosso rendimento (na Venezuela o IVA é de 12%). Portanto, trata-se de um programa para atender às necessidades das grandes potências que precisam de petróleo barato e abundante.

Quais são os objectivos económicos de um possível terceiro mandato de Hugo Chavez?

O grande desafio para os próximos anos é o de aprofundar a construção socialista. O segundo mandato, que começou em 2007, foi de transição. O esforço foi projectado para criar um quadro jurídico que permitirá a acção do governo. Hoje nós temos um conjunto de leis do poder popular e com base nisso que temos de continuar a desenvolver novas formas de propriedade social para possibilitar o fortalecimento dos trabalhadores em comunidades organizadas. O grande objectivo é conquistar os espaços de economia social, relativamente à economia privada. Os primeiros anos serviram para reactivar o aparelho produtivo herdado da Quarta República, composto por empresas regidas pela lógica do capitalismo. O renascimento dessa economia era uma espécie de mal necessário para gerar emprego e desactivar a bomba. Mas o problema hoje não é tanto o renascimento da economia, mas a sua transformação, ou seja, movendo-se de um capitalismo assente nas rendas e importador para um modelo de exportação que possa explorar as vantagens da entrada da Venezuela no Mercosul [4]. Mas, com base no desenvolvimento de novas formas de propriedade social que incluam, mas também ultrapassem, a propriedade privada e a do Estado.

Para onde apontam as investigações do Centro Internacional Miranda?

Procuramos criar um corpo de conhecimentos que irá apoiar as políticas dos programas do governo bolivariano. Quase ninguém contesta as enormes mudanças e desenvolvimentos do governo Chavez. Até mesmo os mais ferrenhos inimigos reconhecem isso e precisam de aparecer agora como os continuadores desse esforço e afirmam que não vão abandonar as missões sociais. Trabalhamos na busca de uma economia social baseada no princípio da solidariedade e complementaridade, equidade e sustentabilidade. A ideia é conquistar uma hegemonia cultural, onde o mundo do trabalho tenha primazia sobre o mundo do capital.

Que percentagem do PIB é estatal na Venezuela?

Esse é um dado muito interessante. Se verificares as estatísticas, quando começa a Revolução Bolivariana, o peso da economia privada era de 65%, face a 35% da pública. Há um discurso do sector empresarial, afirmando que o Estado está a levar tudo e a fechar o espaço à economia privada. Mas quando procuras validar essa informação, verificas que o peso do sector público da economia caiu de 35% para 30% e o peso do sector privado aumentou de 65 para 70%

Qual é a explicação?

A política de reactivação implementada pelo governo foi amplamente aproveitada pelo sector privado, que teve taxas de crescimento mais elevadas do que o sector público. Hoje temos, paradoxalmente, no contexto da construção do socialismo, um sector capitalista que tem crescido a taxas mais elevadas do que o Estado.

Há elementos de neo-keynesianismo?

O modelo bolivariano deve ser entendido pelas etapas que teve de ultrapassar. Catalogá-lo nesses termos não ajuda a entender o que se passa aqui. Chavez ganha em 1998 com a promessa de erradicar a pobreza e reduzir o desemprego. O seu compromisso foi o de convocar uma Assembleia Constituinte para vencer esses flagelos. Até 2006, o esforço foi neste sentido, para reanimar o sector produtivo destruído por políticas neo-liberais. Em 2005, houve uma discussão sobre o sentido que teria reactivar uma economia que trabalhava com a lógica do capital, a mesma que gerava desemprego e pobreza. Então, nunca conseguiríamos erradicar esses males, se continuássemos a incentivar o modelo que gerava o problema. Começa então a planear-se não a reactivação mas a modificação do modelo de produção. Assim, em 2006, quando Chavez volta a ganhar as eleições, propõe declarar o carácter socialista da Revolução Bolivariana, e argumenta-se que o voto em Chavez será o voto pelo socialismo.

Isto envolveu medidas de nacionalização. O que foi expropriado até agora e qual é o limite?

É um dos pontos do crescente debate, não só com os sectores da direita, mas também dentro da esquerda. Houve um consenso geral sobre a expropriação de sectores estratégicos, como energia eléctrica, telefone, siderurgia, fábricas de cimento e duas cadeias de distribuição de alimentos (que agora estão a ser subsidiados), todas com a sua correspondente indemnização. E houve uma compra acordada do Banco da Venezuela.

E as terras agrícolas, com que critério são expropriadas?

Recuperaram-se cerca de 4 milhões de hectares. O critério foi começar por terras onde não havia nenhuma actividade, latifúndios não aproveitados. Depois expropriaram-se terras para produzir alimentos que serviam para silvicultura.

Há um debate ideológico dentro do PSUV sobre até onde se deve avançar com as expropriações.

Uma das contribuições da experiência venezuelana para a conceitualização do que se pensa que será o século XXI é o debate sobre as diferentes formas de propriedade. Uma das coisas que foram discutidas é como no campo soviético a propriedade estatal absoluta de todos os meios de produção e comercialização gerou essas elites burocráticas que acabaram por administrar a propriedade pública como se fosse privada. E essa burocracia acabou funcionando como uma burguesia que alcançou uma distribuição de rendimentos favorável ao seu interesse. Na Venezuela, este debate está presente e vais ver que as leis do poder popular promovem o desenvolvimento da propriedade comunal, onde trabalhadores, comunidades e agricultores se sentem verdadeiros donos dessas unidades de produção. O objectivo não é reeditar a história onde tudo é propriedade estatal, de uma garagem a um quiosque ou um cabeleireiro. Aqui entendemos que o Estado é uma das formas de propriedade mas também se reconhecem a propriedade privada, social e combinações entre elas.

Não se parece nada com o comunismo soviético.
É uma crítica profunda a essa visão de um modelo de produção que sufoca e inibe o espírito empreendedor das comunidades e dos trabalhadores. Pelo contrário, visa estimular a criatividade das pessoas. Ela promove a criação de novas empresas socialistas. E deixa que as empresas capitalistas sejam estimuladas pelo mercado. O esforço do governo visa estimular a criação de empresas socialistas nos termos descritos.

Publicado por PENSAMIENTO CRÍTICO EN REVOLUCIÓN


Notas da Tradução:

[1] A PDVSA - Petróleos de Venezuela é uma empresa estatal venezuelana que se dedica à exploração, produção, refino, comercialização e transporte do petróleo venezuelano.

[2] O Caracaço foi uma revolta social, de grandes proporções, ocorrida na Venezuela no dia 27 de Fevereiro de 1989 em repúdio ao pacote de medidas económicas neo-liberais impostas pelo governo de Carlos Andrés Pérez, na qual se perderam centenas de vidas (Wikipédia).

[3] OPEP - Organização dos Países Exportadores de Petróleo é uma organização internacional criada em 1960 na Conferência de Bagdad que visa coordenar de maneira centralizada a política petrolífera dos países membros, assim como combater a queda no preço do produto (Wikipédia).

[4] Mercosul, Mercado Comum do Sul, é a união aduaneira (livre comércio e política comercial comum) de alguns países da América do Sul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. A suspensão temporária do Paraguai abriu caminho à entrada da Venezuela (Wikipédia).

Traduzido por André Rodrigues P. Silva

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