7 dezembro 2011/Esquerda.net http://www.esquerda.net
A Auditoria é a concretização de um direito fundamental de todas e de todos: o de saber o que estamos a pagar, o que devemos pagar e se podemos pagar.
Por José Gusmão*
No próximo dia 17 de Dezembro, vai realizar-se a Convenção de Lisboa, com o objetivo de instituir um processo de Auditoria Cidadã à Dívida Pública. Esta Auditoria é a concretização de um direito fundamental de todas e de todos: o de saber o que estamos a pagar, o que devemos pagar e se podemos pagar. Isso significa fazer o levantamento e tratamento de toda a informação relevante, mas também tornar essa informação disponível e compreensível para quem tem de decidir.
A tarefa de auditoria é extensa. Em Portugal, a Dívida em sentido estrito está na sua esmagadora maioria titularizada, ou seja, existe sobre a forma de títulos que são emitidos pelo Estado como forma de financiar a sua atividade. Existe muita informação disponível sobre esses títulos, mas também muita que falta, nomeadamente sobre as operações que estão associadas a cada emissão, as condições contratuais e a forma como tem evoluído o stock de dívida nos últimos anos.
Essa informação é relevante a vários níveis. A estrutura de maturidades do stock atual afeta o risco de refinanciamento, o conhecimento das operações de gestão associadas a cada emissão é indispensável para obter um retrato completo do stock atual e as condições contratuais das emissões ativas afetam a capacidade que o Estado tem de impor uma reestruturação a eventuais minorias de credores (dependendo da existência ou não de Cláusulas de Ação Coletiva, por exemplo).
O facto de grande parte da dívida estar titularizada significa que não é possível associar muita da má despesa que se fez no passado a emissões específicas de dívida (ou a credores). Os títulos de dívida pública financiam a despesa do orçamento do Estado indiscriminadamente, independentemente de esta dizer respeito à compra de submarinos ou ao financiamento do Serviço Nacional de Saúde. No entanto, saber a quem se deve pode ser importante num contexto de reestruturação.
Por outro lado, o problema da dívida não é só o da dívida em sentido estrito. Muitas áreas da política económica têm afetado e poderão afetar a evolução futura do nosso endividamento. Os negócios ruinosos realizados através de Parcerias Público-Privado, o sub-financiamento e consequente endividamento de Empresas Públicas, as privatizações e consequente privação do Estado das receitas correspondentes, as operações de salvamento do sistema financeiro são outros aspetos sobre os quais se terá de debruçar uma auditoria cidadã. Porque também aqui as decisões a tomar são muitas e podem afetar de forma decisiva a evolução da nossa economia e dos nossos níveis de endividamento.
A questão determinante em todo o processo é a da reestruturação da dívida. É essa a questão a que teremos de dar resposta e a Auditoria serve essencialmente para informar e apoiar as escolhas que terão de ser feitas a esse nível. Hoje é evidente para qualquer pessoa que se debruce seriamente sobre o assunto que a nossa trajetória de endividamento é insustentável.
A questão é portanto a de saber se a inevitável reestruturação servirá para manter uma economia moribunda ligada ao respirador enquanto os nossos credores realizam receitas extraordinárias a partir da especulação ou se, pelo contrário, esses credores são responsabilizados e penalizados, em benefício de uma reestruturação liderada pelo Estado Português e centrada nas necessidades de promoção do crescimento e do emprego e na defesa do Estado social e dos direitos do trabalho.
É-nos frequentemente dito que uma reestruturação da dívida é impensável, resultará em danos irreversíveis para a nossa reputação e constitui uma violação de obrigações contratuais do Estado Português. Em primeiro lugar, uma reestruturação da dívida é tudo menos impensável e constitui, pelo contrário, um facto relativamente banal na história económica, incluindo a mais recente.
Essa história, aliás, demonstra que os danos de reputação dos processos de reestruturação de dívidas são muito menores do que nos é vendido, conseguindo muitos dos países que os levaram a cabo regressar aos mercados poucos anos (ou meses) depois. De qualquer forma, este argumenta ignora o facto muito simples de que, atualmente, o Estado português não tem acesso aos mercados, estando dependente de um acordo ruinoso com a Troika para assegurar o seu financiamento.
Além disso, de acordo com as próprias previsões desta entidade (absurdamente otimistas), Portugal terá, no fim desta intervenção da Troika, uma economia mais pobre, um desemprego nunca antes visto e uma dívida… muito maior. Ou seja, condições ainda piores para se financiar. Em resumo, a única coisa que nos garante a Troika é a recessão, seguida de outra intervenção da Troika. Na realidade, nenhuma cenário coloca danos tão graves para a nossa reputação do que uma recessão prolongada e os riscos de desagregação social e política. Ninguém empresa a países arruinados.
Finalmente, a questão das obrigações contratuais. Este é talvez o argumento mais descarado de quem se opõe a uma reestruturação. Isso porque o que está a acontecer hoje em dia com a política de austeridade são violações contratuais várias, repetidas e continuadas. Os cortes nos salários da função pública ou nas pensões violam relações contratuais, aliás consagradas na lei, para já não falar da Constituição. Um pouco por todos os setores, da cultura à saúde, passando pelas Universidades e pelos apoios sociais, relações de confiança estão a ser quebradas e direitos estão a ser desmantelados.
Assim, a questão que esta Auditoria terá de colocar ao país é esta: numa situação insustentável, quais os direitos que iremos defender, quais serão as prioridades, quem iremos proteger, quem iremos condenar? Deveremos proteger quem especulou contra a nossa economia, condenando milhões de portugueses à privação e à pobreza? Ou deveremos proteger os direitos que dão forma à nossa democracia, impondo pequenas perdas a quem nunca conheceu semelhantes dificuldades? A esta pergunta, nenhum cidadão hesitará em responder. Só uma auditoria séria e competente a poderá colocar a todo o país.
*José Gusmão, dirigente do Bloco de Esquerda, economista.
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