26 junho 2009/ Conselho Indigenista Missionário (CIMI) http://www.cimi.org.br
Por Ana Paula Lima Rodgers, Edison Rodrigues de Souza, Juliana de Almeida e Vincent Carelli
Os Enawene Nawe sofreram um duro golpe. No dia 24 de junho faleceu Kawali, um dos representantes mais expoentes desse povo, aõre (líder) e sotakatare (mestre de cantos). Sem dúvida um dos maiores virtuoses dos últimos tempos de sua própria e complexa cultura. Mestre ímpar na arte da palavra, cantada ou falada, Kawali dominava excepcionalmente os caminhos da eloqüência musical e retórica, condições que inevitavelmente o talharam como um grande chefe desde muito cedo.
Essa tragédia se coloca num contexto difícil e controverso da atual conjuntura. Líder político e espiritual, Kawali era a figura que mais lutava pela demarcação do Adowina (Rio Preto) e resistia frente aos complexos problemas relacionados à implantação de hidrelétricas no Juruena. Sozinho em sua roça, ele não resistiu a uma mordida de cobra e quando foi encontrado já não tinha mais vida.
Os últimos tempos têm sido de muita efervescência para o povo Enawene Nawe. A intensificação do contato somada à necessidade de se relacionar com os eventos da exterioridade tem causado muitos tumultos, incertezas, desavenças e contradições.
O primeiro golpe que os Enawene Nawe sofreram em 2009 foi uma epidemia de malária que acometeu quase 35% da sua população. A epidemia só foi contida após três meses da ocorrência dos primeiros casos.
Nesse mesmo período os Enawene Nawe saíram para as tradicionais barragens de pesca do ritual Iyaõkwa. Para surpresa e angústia de todos um fato assolou a pescaria: acostumados com uma grande quantia de pescado que eles acessam todos os anos por meio das barragens, desta vez o peixe não veio. Desesperados com a situação os Enawene Nawe apelaram para a assistência da Funai que adquiriu três mil quilos de tambaqui. Mesmo com o apoio da Funai a quantidade de peixe foi muito abaixo da necessária para a realização das trocas cerimoniais do ritual e conseqüentemente irrisória para atender à demanda alimentar dos Enawene Nawe. A falta dos peixes os deixou com precária alimentação simbólica e orgânica, para eles um prenúncio da ira de espíritos que não aceitam a ausência de farta oferenda de peixes.
Grande perda
Pessoa de extrema generosidade, o falecimento de Kawali não representa apenas uma perda insubstituível, se trata de um evento que somado às pressões de várias frentes desenvolvimentistas no entorno de seu território coloca o povo Enawene Nawe em uma condição de extremo cuidado, pois os priva do sábio filósofo das florestas do Juruena. “Sou eu quem não dorme à noite”, diria o grande sotakatare referindo-se à dura vigília e destino de seu ofício.
Recado dos espíritos Yakaliti ou triste acaso do destino, a morte de Kawali representa uma grande perda. Sua sabedoria e carisma, sempre acompanhados de uma boa dose de ironia e argúcia extremas, com certeza deixarão saudades aos familiares, a todo o povo Enawene Nawe e a todos aqueles que de alguma maneira puderam gozar o privilégio de estar junto a ele.
Que nos deixemos todos contagiar pela disposição e sabedoria incomparáveis do mestre, que através de arte e conhecimento soube praticar a grande e singular resistência exercitada há séculos pelas populações tradicionais de nosso país.
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