terça-feira, 31 de maio de 2016

A CAÇA À SWAPO ANTES DA INDEPENDÊNCIA DA NAMÍBIA



30 de Abril, 2016, Jornal de Angola http://jornaldeangola.sapo.ao (Angola)

José Ribeiro

O mês de Abril de 1989 é um período chave na aplicação dos Acordos de Nova Iorque. A 1 de Abril de 1989 tem início da aplicação da Resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU, mas as circunstâncias e os problemas para a sua aplicação são vários.

Em primeiro lugar, a África do Sul procura desmonstrar que a UNTAG (United Nations Transition Group), responsável pelo processo de transição, é parcial, aliada da SWAPO e não está preparada para desenvolver a sua actividade.

A ONU, como sempre, não é expedita na sua acção. O regime de apartheid aproveita e lança a ideia de que a UNTAG não
tinha orçamento nem meios, viaturas e helicópteros e que apenas alguns “capacetes azuis” e especialistas de comunicações estão instalados no terreno.  O objectivo dessa ideia é claro no mês de Abril: mostrar que a presença da máquina de guerra sul-africana ainda é necessária na Namíbia e controlar um “status quo” favorável à minoria branca na África do Sul e ao Ocidente.

Em Abril de 1989, a menos de um ano da independência da Namíbia (21 de Março de 1990), a África do Sul continuava a chantagear a ONU e a lançar o medo sobre as populações namibianas e da região.

A “infiltração” da SWAPO
O movimento de libertação namibiano teve sempre bases no interior da Namíbia e o PLAN, braço armado da SWAPO, realizou várias operações contra os ocupantes sul-africanos.

Conheci Hidipo Hamutenya como secretário para a Informação da SWAPO, e Ben Gurirab, que veio a ser o ministro dos Negócios Estrangeiros da Namíbia, na sede da organização em Luanda, precisamente após um ataque que os guerrilheiros do PLAN realizaram em 1985 contra a base das SADF em Oshakati. Segundo o anuário das Nações Unidas desse ano, no capítulo designado“Trusteeship and Decolonization”, os ataques do PLAN contra as tropas sul-africanas e instalações tiveram um incremento em 1985 e o nível de combates nessa altura era alto.
 
“Os combatentes do PLAN atacaram com sucesso várias colunas, centrais de comunicações, agentes especiais, bases militares, sistemas rodoviários e condutas de água. Em Julho (1985) os combatentes do  PLAN atacaram as tropas sul-africanas em mais do que 123 ocasiões. Os ataques tiveram lugar junto das bases militares sul-africnas  em Oshakati e Eenhama. Em Novembro (1985) o PLAN atacou a base militar do Ruacaná, causando sérios danos”, refere o anuário da ONU, organização que exercia o papel de potência administrativa do Sudoeste Africano.
 
Em Abril de 1989, quatro meses após os Acordos de Paz de Nova Iorque, a África do Sul racista tentava fazer crer ao mundo que os combatentes da SWAPO nunca estiveram no interior da Namíbia, apenas em Angola. Os serviços de inteligência sul-africanos anunciaram então que, ao longo da fronteira com Angola, havia uma “penetração massiva” de guerrilheiros do PLAN, com armas ligeiras, pesadas e mísseis terra-ar. O regime de apartheid apresenta isso como uma ameaça à aplicação da Resolução 435 e solicita à UNTAG que deixe as suas forças intervirem no terreno, em lugar do contingente da ONU, por este “não ter meios de qualquer tipo”. Se não tivesse a anuência a República da África do Sul afastar-se-ia do processo.

“Operação Merlyn”
As Nações Unidas caem no engodo. A África do Sul e as SADF lançam então a “Operação Merlyn”, nome da acção desencadeada durante nove dias, de 1 a 9 de Abril de 1989, contra supostos “guerrilheiros da SWAPO infiltrados”.  Essa operação inspira o livro do britânico nascido na África do Sul Peter Stiff, “Nine Days of War: Namibia – Before, During and After”. O livro  reflecte e legitima a visão do apartheid, é claramente contra  o movimento de libertação e contra a própria ONU. Os contornos dos factos e acontecimentos que ocorreram nesse mês de Abril não estão totalmente esclarecidos até à presente data. Nessa ocasião, segundo Peter Stiff, “nunca a SWAPO introduziu tantos homens e armas nos últimos 20 anos de guerra”, mas também é certo que o potencial das forças militares ainda movimentado pela África do Sul no terreno é enorme.

No rescaldo da “Operação Merlyn”, o regime racista veio publicamente vangloriar-se de que “a SWAPO perdeu mais de 300 homens, sobretudo jovens sem experiência de combate”.

É hoje evidente que o apartheid precisava de encontrar um sucesso militar para se redimir da derrota sofrida no Triângulo do Tumpo. Mas o preço foi alto. O resultado em mortes e feridos da operação apenas foi  ultrapassado pelo Massacre de Cassinga, onde o apartheid assassinou, num só dia, mais de 600 namibianos, incluindo crianças.

Margareth Thatcher

Para complicar ainda mais a compreensão sobre o que se passou naquele momento, a “Operação Merlyn” começa  precisamente quando a primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, chega à Namíbia, para “acompanhar” a aplicação da Resolução 435.
 
Thatcher termina em Windhoek um périplo por África e mostra-se num primeiro momento surpreendida com os acontecimentos relatados pelo lado sul-africano. A governante britânica escreve ao secretário-geral da ONU, Javier Perez de Cuellar, condenando a “incursão” da SWAPO por desrespeitar a comunidade internacional e propondo uma reunião do Conselho de Segurança sobre a situação na Namíbia. Nos dias seguintes assiste-se a um turbilhão de acontecimentos, em que os papéis históricos se invertem. A SWAPO passa a agressora e a ONU a incapaz. O processo fica tão intrincado que só políticos perspicazes e serenos podem desfazer o nó do problema.
 
A solução vem dos Países da Linha da Frente e, principalmente, de Angola.

Declaração de Mount Etjo
A 8 de Abril, os signatários dos Acordos de Nova Iorque reúnem-se de urgência em Monte Etjo, Namíbia, e aprovam no dia seguinte a famosa “Declaração de Mount Etjo”, que responsabiliza a SWAPO pelos acontecimentos.

Perante isso, o Presidente de Angola, de onde a RSA diz que parte a “infiltração” da SWAPO, solicita uma reunião dos Países da Linha da Frente, aos quais nunca deixou de informar sobre as agressões da África do Sul e da UNITA e sobre as conversações tripartidas mediadas pelos EUA. Nessa reunião, o líder angolano, em face dos factos em presença, tem acima de tudo como preocupação salvar o processo de paz, assegurando os interesses dos povos da região. José Eduardo dos Santos critica a direcção da SWAPO por se ver envolvida em acções que beneficiam o infractor.
 
O presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, propõe nesse encontro a inclusão na UNTAG de uma unidade fornecida pela Linha da Frente. Pretória rejeita. Nada resta senão aplicar a Declaração de Monte Etjo, em que se reafirmam os compromissos assumidos em Nova Iorque a 22 de Novembro de 1988 e se estabelece um calendário para a “saída das tropas da SWAPO da Namíbia”, a partir de pontos bem definidos, para serem acantonadas em Angola, a Norte do Paralelo 16, sob a supervisão da UNTAG.
 
Angola aprova o calendário e toma medidas para evitar novos descarrilamentos. Uma Ordem “secreta” do ministro da Defesa, coronel general Pedro Maria Tonha “Pedalé”, a que o Jornal de Angola teve acesso, emanada quando ainda decorria a reunião em Monte Etjo, prova que foram dados passos rigorosos por Angola para uma cooperação estreita com a UNTAG e o controlo dos efectivos da SWAPO.

A solução que saiu de Angola
O então ministro da Defesa de Angola, coronel general Pedro Maria Tonha (“Pedalé”), enquanto ainda decorria a reunião da Comissão Mista em Monte Etjo, emitiu uma Ordem “Sobre a Implementação da Resolução 435/78 da ONU a Nível Militar”, a que o Jornal de Angola teve acesso.

A Ordem mostra o elevado grau de empenho do Governo angolano em facilitar o trabalho da ONU de verificação do cumprimento da Resolução 435 e dos acordos realizados durante as conversações tripartidas entre Angola, Cuba e RSA, sob mediação dos Estados Unidos.

A Ordem do ministro da Defesa cria um grupo técnico composto por experientes oficiais superiores das FAPLA e diplomatas angolanos que passa a ter a incumbência de “controlar as bases da SWAPO no Território Nacional, assim como apoiar a UNTAG em todo o processo de verificação” dos pontos acordados em Monte Etjo.

A Ordem do Ministro da Defesa demonstra o engajamento sério e consequente do Presidente e Comandante-Em-Chefe das FAPLA para implementação da Resolução 435.

O turbilhão de acontecimentos da “Operação Merlyn” em Abril de 1989
A 1 de Abril de 1989, “dia das mentiras”, uma equipa da Polícia sul-africana informa, por rádio, que encontrou rastos de rebeldes da SWAPO que durante a noite atravessaram o rio Cunene em direcção à Namíbia. Os “Alouette” são colocados em prontidão e os comandantes da Base Aérea de Ondangwa vão para a sala de controlo.

Os “Alouettes” avistam os primeiros elementos da SWAPO que preparam uma emboscada a uma secção da polícia. Os elementos da SWAPO ignoram os helicópteros.

Os pilotos dos helicópteros recebem ordem, a partir de Ruacaná,  de que “não podem abrir fogo”. Mas os aparelhos voam baixo e, segundo o livro de Peter Stiff, “Nine Days of War: Namibia – Before, During and After”, são envolvidos por tiros de AK e RPG e respondem ao fogo.
 
O número de mortos da SWAPO é alto. Pouco depois do meio-dia, o avião “VC-10” da Força Aérea Real britânica aterra no Aeroporto de Windhoek com a primeira-ministra Margareth Thatcher. Parecia que Thatcher não tinha conhecimento dos acontecimentos com a SWAPO. Informada sobre o assunto, mostra-se preocupada. A sua missão por África era “ajudar a África do Sul a sair da posição de isolamento”, refere Stiff.
Thatcher fala aos jornalistas e apela a Martti Ahtisaari para elaborar um relatório urgente para o secretário-geral da ONU, Javier Perez de Cuellar, que deve convocar uma sessão extraordinária do Conselho de Segurança da ONU. Começa um rodopio diplomático. A África do Sul ameaça retirar as suas forças da área de acantonamento.  “Pik” Botha fala ao telefone com Perez de Cuellar e salienta que a situação é “grave”. Diz que a polícia do Sudoeste Africano precisa urgentemente de ajuda. A única ajuda disponível é a dos militares sul-africanos acantonados, já que a UNTAG não pode ajudar porque não estava mandatada para isso e nem tinha forças desdobradas. De Cuellar concorda com a assistência militar sul-africana.
 
A “Operação Merlyn” está em marcha e a caça à SWAPO imparável. Thatcher ainda tem o pudor de aconselhar a África do Sul a “ter o cuidado de se manter dentro dos limites dos acordos”.

A ONU em Nova Iorque declara  que a “incursão armada” da SWAPO é uma violação grave da Resolução do Conselho de Segurança subscrita pela África do Sul, Cuba e Angola. De nada valem as palavras do líder da SWAPO, Sam Nujoma, que nessa noite, em entrevista à televisão do Zimbabwe, condena a visita “extremamente infeliz” da primeira-ministra britânica à Namíbia ainda ocupada e considera que ela deveria ter esperado até a Namíbia ser libertada.
 
No dia 2 Abril de 1989, em comunicado divulgado em Luanda, a SWAPO nega que os combatentes do PLAN tivessem lançado um ataque na Namíbia e declara que os confrontos foram “iniciados pelas SADF”. As forças da SWAPO dispararam simplesmente em autodefesa depois de terem sido atacadas.

A SWAPO sublinha que as suas forças estão com “instruções estritas para não iniciarem qualquer acto de hostilidade militar”.
 
Na edição de 3 de Abril de 1989 do “The Namibian”, tendo como manchete “435 em Perigo”, o jornal refere que “os relatos do extremo norte, na noite passada, indicam que as batalhas ainda estão a ser travadas a 300 quilómetros entre as Forças de Segurança Sul-Africanas e os combatentes da SWAPO”. A propaganda do apartheid nega que sejam as SADF a actuar e afirma que é a Polícia do Sudoeste Africano a operar com as Nações Unidas, uma “importante diferença” ridícula, já que as populações namibianas diziam: “São as mesmas caras, os mesmos Casspirs, os mesmos uniformes. A polícia envolvida nos combates é da unidade dos Koevoet” – os namibianos recrutados pelo apartheid para reprimirem o seu próprio povo. É o mesmo Batalhão 101.º da RSA que saiu do acantonamento.

No dia 4 de Abril de 1989, há outros  confrontos com os combatentes da SWAPO.  As unidades militares “Zulu”, “Zulu Quebec”, “Zulu Lima” e “Zulu Delta 4” matam  e detêm combatentes namibianos.
 
A 5 de Abril, os “Alouette” sul-africanos voltam a entrar em acção.  Os pilotos fazem uma “limpeza conjunta” e quando descem encontram corpos de combatentes da SWAPO. Peter Stiff escreve no seu livro que “os grupos da Polícia acamparam durante a noite nos trilhos, prontos para continuarem com a caça aos elementos da SWAPO na manhã seguinte”.
A 6 de Abril os “Alouette” voltam e descarregaram o seu fogo sobre forças da SWAPO. São mobilizadas mais unidades militares, incluindo Batalhões de Paraquedistas das SADF, o 201.º Batalhão Bushman e o 202.º Batalhão da Força do Território do Sudoeste Africano. “Mataram muitos inimigos durante as semanas seguintes”, escreve Stiff.

A 7 de Abril, “Pik” Botha envia uma carta a Perez de Cuellar apontando para a “infiltração” de entre 1.800 e 1.900 elementos da SWAPO até à data e a distribuição pelas zonas onde estavam e até aqueles grupos que nas áreas do Ruacaná, Namacunde e Oshikango, Owambo, Caprivi ainda não entraram e tinham a intenção de o fazer.

A 8 de Abril de 1989, a Comissão Mista de Verificação reúne-se no “Safari Lodge” de Monte Etjo e põe fim à crise e os diplomatas de cada país encarregue do “dossier” da África Austral. Em Luanda, Sam Nujoma publica um comunicado em que declara: “Tomámos a decisão de ordenar a todas as tropas do PLAN dentro da Namíbia para pararem de lutar, reagruparem-se e regressarem à República Popular de Angola no prazo de 72 horas.  Chegámos a esta decisão difícil porque estamos conscientes da responsabilidade histórica que temos para com o nosso povo e para com a humanidade como um todo”.

A 9 de Abril de 1989, no final da  reunião da Comissão Mista, é emitida a “Declaração de Monte Etjo”, em que todos os signatários dos Acordos de Nova Iorque reafirmam os compromissos assumidos a 22 de Novembro de 1988 e estabelecem um calendário para a “saída das tropas da SWAPO da Namíbia”, a partir de pontos bem definidos, para serem acantonadas em Angola, a Norte de Paralelo 16 sob a supervisão da UNTAG.
 
Numa peculiar declaração, a 24 de Abril, Hidipo Hamutenya, o secretário para a Informação da SWAPO que tive o prazer de conhecer na Rua Rei Katiavala, em Luanda, diz em Londres à BBC: “Antes de a tinta do Acordo de Mount Etjo ter secado, os sul-africanos já tinham enviado as suas tropas para cercarem todos os pontos de concentração acordados”.

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