domingo, 14 de dezembro de 2008

Moçambique/IGREJA OCUPA VAZIO EXISTENTE NA RELAÇÃO ESTADO CIDADÃO (Parte II / Final)

Júlio Manjate

O Ministério da Justiça registou entre 1990 e 2008 um total de 619 novas igrejas em todo o país, que se juntam a tantas outras que vinham jogando o seu papel no esforço de construção de uma consciência humana à imagem divina. Olhando para a função da Igreja enquanto instituição inspiradora de modelos de correcção, de ética e da moral pública torna-se difícil estabelecer uma relação causa-efeito entre o crescimento numérico das igrejas e a crescente degeneração dos padrões de moral na sociedade moçambicana. Ou seja, ocorre uma relação inversa entre a expansão da igreja e a atitude do Homem em relação à vida e ao “Mestre Divino”. Para discutir os contornos deste paradoxo e perceber a visão do Governo sobre o assunto, conversámos com o Prof. Dr. Carlos Machili, Director de Assuntos Religiosos no Ministério da Justiça. Da conversa com o Professor Machili, fica uma ideia clara dos erros e omissões cometidos ao longo do tempo, que propiciaram a multiplicação de confissões religiosas, muitas das quais têm o domínio do mundo da fé, sem nenhum conhecimento sólido sobre o mundo da razão. Na entrevista, que incluiu uma viagem pela Antropologia Teológica, Carlos Machili faz um olhar sobre o papel da Igreja em Moçambique, e avança a sua opinião sobre as razões do crescimento exponencial do número de instituições religiosas no país:


8 dezembro 2008/Notícias


Not – E qual foi o peso que a Igreja teve no avanço do movimento nacionalista moçambicano?
CM – Olha, uma igreja não é apenas a casa do pároco e o altar. É todo o conjunto à sua volta. Eu nasci numa família religiosa. Meu avô era padre anglicano, e meu pai também. Os pais de Joaquim Chissano, Mário Machungo, Pascoal Mocumbi, Mariano Matsinhe entre outros, estudaram na missão do Alvor, na Manhiça, e só depois é que foram parar ao ambiente público. E quando saíram de lá sabiam que a primeira coisa que tinham de fazer era dar educação aos filhos. E investiram nisso...
Not - Mas como se explica então que, hoje, havendo mais gente nas igrejas, mais padres, isso não se reflicta numa melhor orientação das crianças e dos jovens?
CM - Eu penso que as pessoas são orientadas. A sociedade é que está num dinamismo muito acelerado. Os nossos filhos não são nossos, são filhos da sociedade. O que o teu filho de 17 ou 18 anos te pede para comprar é aquilo que ele vê na praça... E se não fala contigo directamente pede que a mãe interceda e tu tens que fazer para não complicar mais a situação. As instituições religiosas precisam redobrar o seu esforço. Sair das brigas internas. Valorizar a acção do Espírito Santo. Não brincarem com o Espírito Santo, se é que o têm. Precisam ler as agendas prioritárias do país para poderem contribuir no desenvolvimento integral e completo do Homem.
Not – Sob esse ponto de vista, as igrejas estão desfasadas...
CM – Olha, eu digo sinceramente que estou com medo. Nós perdemos por completo a noção do pecado. E uma vez perdida esta noção acabou-se! Até em termos de conhecimento científico estamos prejudicados. Esta elite moçambicana, da qual faço parte, mas que critico, tem um défice de conhecimentos básicos e de métodos e técnicas. Veja, por exemplo, quando chegou a independência dissemos que as línguas maternas não eram nada, que o português é que era a língua nacional, que era a língua da unidade nacional. Amigo, a consciência da unidade nacional não se ganhou com a língua portuguesa! Foi com um trabalho intenso, lento, de consciência política. Quem é que pensa em português? Vai lá para a aldeia e veja. A qualidade de ensino, sobretudo lá no campo, é fraca porque a maior parte das crianças vem de famílias de iletrados. O professor que pega nestas crianças é pai, é tudo. Esta base de escola tinha sido criada por Eduardo Mondlane. Quando chegou a independência quebrámos o projecto que Mondlane elaborou em 1961, para ter um núcleo básico de gente instruída para a FRELIMO...
Not – Qual era a essência desse projecto?
CM - Ele defendia que o Ensino Primário deve ser fundado a partir das línguas maternas. Eu sei ler e escrever em nyanja, minha língua, tal como sabem muitos outros que estudaram no meu tempo... A maior parte das crianças no campo não pensa em português. Até à sétima classe o Ensino Primário é só violência psíquica para a criança. Precisamos discutir onde estão os erros para podermos corrigir. Agora introduziu-se isso está a andar mas já é tarde porque as elites instruídas não querem saber disso e nem querem saber dos seus filhos a estudar nas nossas universidades...
ESTADO DEVE DESPERTAR PARA A NOVA REALIDADE
Teoricamente, nenhuma instituição no mundo, tanto na Política como na Sociologia, tem capacidade de dialogar com o ser humano como têm as instituições religiosas. Hoje em dia, fica claro que é a igreja que mais contacta, regularmente, com o fórum íntimo do ser humano. Esta situação pode configurar um ambiente política e sociologicamente adverso para o Estado...
Not – Na sua opinião ainda vamos a tempo de envolver a Igreja nesta discussão com toda a dispersão que hoje a caracteriza?
CM - Precisamos reequacionar este crescimento. Temos que motivar as igrejas a tomar consciência de um ambiente sociológico mudado, muito acelerado. Elas têm que ter um discurso que não seja só de momento. Para mim esta diversidade nem é tão alarmante como isso, porque podemos voltar a afunilar e, ao invés de multiplicar, deixar que as várias igrejas novas sejam como que ramificações de uma mesma visão da igreja. Porque é que temos mais de 90 ou 200 igrejas zione e não podemos ter apenas uma com vários escalões de organização e uma autoridade única? Temos que obrigar a eles a ler a importância disto.
Not – E quem vai fazer esse exercício?
CM - Esse exercício tem que sair da pressão social... para elas compreenderem que não são apenas autoridade política e social mas que são também autoridade espiritual. Não é por decreto que eles vão ganhar esta consciência, porque também se realizam como elites, como líderes muito poderosos, por vezes até mais do que os líderes políticos. Temos por aí 800 líderes religiosos em Moçambique, e se multiplicarmos por seis que é o mínimo que cada igreja tem? E não estamos a contabilizar as congregações da Igreja Católica. Quantos padres anglicanos existem? E católicos? Quantas irmãs existem pelo país fora? E repare que todos estes são poderes societais. Como chamar então as igrejas para poderem ser uma força de desenvolvimento e de mudança de mentalidade? Este é um diálogo que tem que ser feito pacientemente. Mas o Estado tem que saber que há uma força que se um dia lhe virar as costas, muita coisa pode se perder... Este é um assunto muito delicado. O Estado tem que conhecer melhor este mundo...
Not – O que quer dizer com isso, professor?
CM - Quero dizer que precisamos de trabalhar seriamente com as instituições religiosas porque estamos muito atrasados. Temos que nos abrir rapidamente. Estes números de crescimento reflectem um vazio do poder à jusante e a incapacidade das igrejas de cumprir a sua missão à montante. A igreja tem um grande manancial porque lida com o Homem. Nenhuma instituição no mundo, tanto na política como na sociologia, tem capacidade de dialogar com o ser humano como uma instituição religiosa. A Igreja tem a capacidade de fazer a pessoa revelar-se, recuar até ao ponto em que ele percebe que a sua vida começou a degradar-se. E conseguem fazer as pessoas mudar! O ponto é como é que podemos explorar este dom a bem da sociedade. O Estado tem que abrir as portas, chamar as igrejas...
Not – Já agora, como vão as relações entre a Igreja e o Estado em Moçambique?
CM - As relações entre a Igreja e o Estado são regidas pela Constituição da República, desde a de 1975, passando pela de 1990 até à actual versão, em vigor desde 2004. Também existem vários decretos que definem balizas de actuação. No entanto, apenas definem normas gerais da liberdade, mas ninguém governa um país só com a Constituição. É preciso haver leis específicas e no caso de Moçambique essa competência foi dada à direcção de assuntos religiosos. Ora, os assuntos religiosos primeiro estiveram na alçada do Ministério da Educação e Cultura, porque a preocupação da Frelimo logo após a independência era nacionalizar a educação que estava nas mãos das igrejas, sobretudo as cristãs.
Depois em 1977, com o início da escalada de agressão rodesiana, os assuntos religiosos passaram para o Ministério do Interior e só em 1983 é que passaram para o Ministério da Justiça.
Not – Professor, o envolvimento que a Igreja teve nas negociações de Paz para Moçambique acabou lhe conferindo um crédito adicional junto das comunidades, porque de repente passou a ser vista como a única instituição capaz de fazer os moçambicanos a respeitarem-se. Este raciocínio é correcto?
CM - O fim da guerra abriu espaço para as igrejas, sim, mas o Estado também abdicou, desorientou-se ou deixou que elas entrassem e passassem logo para o lado fácil da coisa que foi multiplicarem-se. Criaram muito poder. Hierarquizaram-se e agora têm muito poder sobre as pessoas...
Not – É fácil fundar uma igreja em Moçambique?
CM – Olha, eu penso que foi correcta a decisão do Governo deixar expandir as igrejas para podermos começar a reflectir internamente. O ponto é como é que vamos começar a discutir com esta elite toda? E estamos a falar apenas dos cristãos e muçulmanos. Quantas madrassas existem em Moçambique e onde se localizam? Para podermos trazer estas pessoas todas para o diálogo, precisamos fazer um mapeamento das madrassas, capelas e mesquitas, saber onde se localizam.
Not - Quer dizer que agora não há controlo sobre as igrejas?
CM - Eu não diria que esse seja o caso. Deixamos que as igrejas cobrissem o vazio que existia, mas agora podemos criar condições para conversarmos e alinhavar as coisas. As regras existem, tem que haver, sim, uma monitoria e para isso precisamos fazer aprovar um instrumento que se chama Lei da Liberdade Religiosa. Sem isso aprovado na AR não temos nenhum instrumento legal para monitorar as coisas. O regulamento de licenciamento existe, mas precisamos desse instrumento para podermos ir ter com as igrejas. A proposta está há quatro anos na AR.
Not - Esta situação não põe em causa a função do Estado enquanto protector dos cidadãos?
CM - Não. Eu até diria que é o contrário. Como cidadãos nós estamos a ter medo das igrejas, mas afinal qual é a função das igrejas? É construtiva ou destrutiva?
Not - Mas com esta concorrência entre as igrejas tudo fica diluído...
CM – Na verdade a concorrência ridiculariza as igrejas, mas não chegamos ao ponto de pensar que elas são todas promíscuas. Deixemos isso e vamos ver qual o papel que elas podem jogar. Porque é que não podemos converter o seu papel? Este medo que temos das igrejas tem a ver com a nossa fragilidade devido à falta de leigos nas igrejas... Na Igreja católica, por exemplo, quais são os leigos empenhados? Os discursos da Igreja Católica são escritos pelos bispos que num parágrafo podem dizer que o Governo faz bem, e noutros a seguir dizer que só faz mal... Aquele não é trabalho dos bispos, têm que ser os crentes quem faz. O problema é que temos medo de assumir o nosso papel na sociedade e queremos que os padres fiquem mansos. Estamos numa sociedade em revolução, sociedade do conhecimento e de economia do conhecimento.
Not – E como pensa que podemos sair dessa situação?
CM - A minha ideia é que o crente se constitua com base na melhoria do desempenho das igrejas. As intrigas de hoje já vão ao nível de tribunais. Contratam-se advogados. Há muitos casos nos tribunais. Como é possível uma Igreja ir procurar um advogado por causa de problemas do Espírito Santo?
Not – Afinal são as igrejas que precisam ser moralizadas...
CM – Não há dúvida que as igrejas precisam de aprofundar a sua função que é lidar com valores éticos e morais do cidadão e, a partir disso, de criar estruturas de funcionamento. As igrejas, sobretudo as novas, não têm estrutura. É preciso que os crentes dessas igrejas constituam-se como uma força... Têm que ser os crentes quem diz ao padre o que é que a comunidade quer que a sua igreja seja. Não podem transferir essa responsabilidade para os padres. Moçambique não tem leigos que digam que nós queremos que as coisas sejam assim. É preciso acabar com o medo porque de contrário vamos continuar nesta e a transferir as nossas responsabilidades para o poder religioso. Não vamos abandonar as igrejas e deixar que sejam elas a baterem-se com os problemas. Tirando as igrejas católica, presbiteriana, metodista e nazareno, a maior parte tem uma base de formação zero. Têm apenas o dom do Espírito Santo. Mas vais à Igreja Universal e encontras quadros superiores do aparelho do Estado... Como é que isso é possível? Não podemos contornar. Repare, por exemplo, que tipo de pessoas é que a Igreja Universal traz para os seus templos. São pessoas com problemas ou não?
Not - Que saída então?
CM - Como gestor de um órgão de soberania que lida com assuntos religiosos tenho que me organizar. Tenho que ter orientações claras sobre o que é que agora e no futuro o meu Governo quer que a igreja seja. Saber qual é a política religiosa do meu país. Para isso, é dever de todos nós criar bases suficientes para o Governo tomar decisões. Temos que ter um plano a médio e longo prazo. Ter planos estratégicos. Para fazer este exercício temos que envolver a Igreja. Precisamos dar às lideranças religiosas e o Governo ferramentas para desenharem uma política religiosa. Temos que identificar acções prioritárias a imediato, curto, médio e longo prazos. Como valorizar a riqueza que se criou durante estes anos todos nas igrejas? Precisamos de uma lei ordinária que nos permita dialogar com as igrejas, uma a uma. A partir da lei que queremos ver aprovada, vamos poder avançar com o desenho de um programa concreto de trabalho. Precisamos chamar à reflexão conjunta os leigos e todos cidadãos que partilham a fé nessas igrejas. Temos até catedráticos nas igrejas. Então é preciso envolver estas pessoas todas neste exercício... (FIM)

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