29 novembro 2013, Pátria Latina http://www.patrialatina.com.br
(Brasil)
As
discussões sobre um acordo de livre-comércio entre o Canadá e a U.E foram
concluídas em 18 de outubro. Um bom presságio para o governo dos EUA, que
espera firmar uma parceria desse tipo com a Europa. Negociado em segredo,
permitiria às multinacionais processar qualquer Estado que não siga as normas
do liberalismo
por Lori Wallach*, Le Monde Diplomatique
É
possível imaginar as multinacionais levando aos tribunais os governos cuja
orientação política tivesse por efeito diminuir seus lucros? É concebível
pensar que elas podem exigir – e conseguir! – uma compensação generosa pela
perda de rendimentos causada por um direito do trabalho muito restritivo ou por
uma legislação ambiental muito espoliadora? Por mais improvável que possa
parecer, esse cenário não é novo. Ele já aparecia com todas as letras no
projeto do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), secretamente negociado
entre 1995 e 1997 pelos 29 países-membros da Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômicos (OCDE).1 Divulgada in extremis, a cópia despertou em
vários países uma onda de protestos sem precedentes, forçando seus promotores a
mandá-la para a gaveta. Quinze anos depois, ei-la de volta em grande estilo,
com uma nova roupagem.
O acordo
para criar uma Parceria de Investimento e Comércio Transatlântica (TTIP, na
sigla em inglês), negociado desde julho de 2013 pelos Estados Unidos e pela
União Europeia, é uma versão modificada do AMI. Ele prevê que as legislações em
vigor em ambos os lados do Atlântico estejam em conformidade com as normas de
livre-comércio estabelecidas pelas – e para as – principais empresas europeias
e norte-americanas, sob pena de sanções comerciais ao país transgressor ou de
uma reparação de vários milhões de euros em favor dos queixosos.
De acordo
com o calendário oficial, as negociações só devem chegar a um resultado após um
prazo de dois anos. O acordo combina, aprofundando-os, os elementos mais
nefastos das parcerias efetivadas no passado. Se tivesse entrado em vigor, os
privilégios das multinacionais assumiriam força de lei e amarrariam as mãos dos
governantes. Impermeável às alternâncias políticas e às mobilizações populares,
ele se aplicaria pelo bem ou pela força, já que suas disposições só poderiam
ser alteradas com o consentimento unânime dos países signatários. Ele
replicaria na Europa o espírito e as modalidades do modelo asiático, o acordo
de Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP), que está sendo
adotado em doze países depois de ter sido ardorosamente promovido pela
comunidade empresarial norte-americana. Juntas, a TTIP e a TPP formariam um
império econômico capaz de ditar suas condições para além de suas fronteiras:
qualquer país que buscasse estabelecer relações comerciais com os Estados
Unidos ou a União Europeia seria forçado a adotar tais e quais as regras que
prevalecem no mercado comum deles.
Tribunais
especiais
Como
almejam liquidar porções inteiras do setor não comercial, as negociações sobre
a TTIP e a TPP são realizadas a portas fechadas. As delegações norte-americanas
têm mais de seiscentos consultores comissionados pelas multinacionais, que
dispõem de acesso ilimitado aos documentos preparatórios e aos representantes
do governo. Nada deve ser filtrado. Foi dada a instrução de deixar jornalistas
e cidadãos fora das discussões: eles serão informados em tempo hábil, na
assinatura do tratado, quando será tarde demais para reagir.
Em uma
explosão de sinceridade, Ron Kirk, ex-secretário do Comércio dos Estados
Unidos, defendeu as vantagens de “preservar certo grau de discrição e
confidencialidade”.2 Na última vez que foi publicada uma versão de um acordo
que estava sendo negociado, apontou Kirk, as negociações fracassaram – uma
alusão à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), um modelo expandido do
Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta); o projeto, ferozmente
defendido por George W. Bush, foi revelado no site do governo em 2001. Porém, a
senadora Elizabeth Warren retruca que um acordo negociado sem nenhum exame
democrático nunca deveria ser assinado.3
O
imperioso desejo de ocultar a preparação do tratado EUA-UE da atenção do
público é facilmente compreensível. É melhor usar o tempo para anunciar ao país
os efeitos que ele vai produzir em todos os níveis: desde o topo do governo
federal até os conselhos municipais, passando pelos governos e pelas
assembleias locais, as autoridades eleitas devem redefinir de alto a baixo suas
políticas públicas de maneira a satisfazer os apetites do setor privado, nas
áreas que ainda lhe escapam. Segurança alimentar, normas de toxicidade,
seguros-saúde, preço dos medicamentos, liberdade na internet, proteção de privacidade,
energia, cultura, direitos autorais, recursos naturais, formação profissional,
equipamentos públicos, imigração: não há um campo de interesse geral que não
passe pelo jugo do livre-comércio institucionalizado. A ação política dos
eleitos se limitará a negociar com as empresas ou seus mandatários locais as
migalhas de soberania que eles quiserem lhes permitir.
Está
desde já estipulado que os países signatários vão assegurar a “colocação em
conformidade de suas leis, de seus regulamentos e de seus procedimentos” com as
disposições do tratado. Ninguém duvida que eles vão se esforçar para honrar
esse compromisso. Caso contrário, poderiam ser objeto de processos diante de um
dos tribunais criados para arbitrar disputas entre os investidores e os países,
e com o poder de impor sanções comerciais contra estes últimos.
A ideia
pode parecer improvável; contudo, ela se inscreve na filosofia dos acordos
comerciais já em vigor. No ano passado, a Organização Mundial do Comércio (OMC)
condenou os Estados Unidos por latas de atum rotuladas como “sem perigo para os
golfinhos”, pela indicação do país de origem em carnes importadas e pela
proibição de tabaco com cheiro de bombom, sendo tais medidas de proteção
consideradas entraves ao livre-comércio. Ela também infligiu à União Europeia
sanções de centenas de milhões de euros por sua recusa em importar
transgênicos. A novidade introduzida pela TTIP e pela TTP é que elas
permitiriam às multinacionais processar em seu nome um país signatário cuja
política tivesse um efeito restritivo sobre sua exploração comercial.
Sob tal
regime, as empresas seriam capazes de contrariar as políticas de saúde, de
proteção ambiental ou de regulação das finanças em vigor nesse ou naquele país,
exigindo uma indenização em tribunais extrajudiciais. Compostas por três
advogados da área empresarial, essas cortes especiais que atendem às leis do
Banco Mundial e da ONU estariam habilitadas a condenar o contribuinte a pesadas
reparações quando sua legislação reduzisse os “lucros futuros esperados” de uma
corporação.
Esse
sistema “investidor vs.Estado”, que parecia varrido do mapa após o abandono da
AMI em 1998, foi restaurado em segredo ao longo dos anos. Em virtude de vários
acordos comerciais assinados por Washington, US$ 400 milhões passaram do bolso
do contribuinte para o das multinacionais, graças à proibição de produtos
tóxicos, ao controle da exploração da água, do solo ou da madeira etc.4 Sob a
égide desses mesmos tratados, os procedimentos atualmente em curso – em
assuntos de interesse geral, tais como as patentes médicas, a luta antipoluição
ou as leis sobre o clima e os combustíveis fósseis – estão elevando os pedidos
de indenização a US$ 14 bilhões.
A
Parceria de Investimento e Comércio Transatlântica também tornaria mais pesada
a fatura dessa extorsão legalizada, dada a importância dos interesses em jogo
no comércio entre as regiões. Nos Estados Unidos, com 24 mil filiais, existem
3,3 mil empresas europeias, e cada uma delas poderia se considerar apta a
buscar reparação por uma perda comercial. Tal efeito ultrapassaria em muito os
custos ocasionados pelos tratados anteriores. Por sua vez, os países-membros da
União Europeia se veriam expostos a um risco financeiro ainda maior, sabendo
que 14,4 mil empresas norte-americanas têm na Europa uma rede de 50,8 mil
filiais. No total, são 75 mil empresas que poderiam se lançar na caça aos
tesouros públicos.
Oficialmente,
esse sistema deveria de início servir para consolidar a posição dos
investidores em países em desenvolvimento desprovidos de um sistema legal
confiável; ele lhes permitiria fazer valer seus direitos em caso de
desapropriação. Mas a União Europeia e os Estados Unidos não constituem
exatamente zonas de ausência de direitos; eles dispõem, ao contrário, de uma
justiça funcional e plenamente respeitadora do direito à propriedade. Ao
colocá-los sob a tutela de tribunais especiais, a TTIP demonstra que seu
objetivo não é proteger os investidores, mas aumentar o poder das
multinacionais.
Processo
por aumentar o salário mínimo
Os
advogados que compõem esses tribunais não têm contas a prestar a nenhum
eleitorado. Invertendo alegremente os papéis, eles podem tanto servir como
juízes quanto defender a causa de seus poderosos clientes.5 É um mundo bem
pequeno esse dos juristas do investimento internacional: eles são apenas quinze
a compartilhar entre si 55% dos casos tratados até hoje. Obviamente, suas decisões
são finais.
Os
“direitos” que eles têm por missão proteger são formulados de maneira
deliberadamente vaga, e sua interpretação poucas vezes serve aos interesses da
grande maioria. É o caso do direito concedido ao investidor de se beneficiar de
um marco regulatório coerente com suas “previsões” – pelo que convém entender
que o governo vai proibir a si mesmo de modificar sua política depois que o
investimento tiver sido feito. Já o direito de obter uma compensação em caso de
“desapropriação indireta” significa que os poderes públicos deverão colocar as
mãos no bolso se sua legislação tiver por efeito reduzir o valor de um
investimento, inclusive quando essa mesma lei também se aplica a empresas
locais. Os tribunais reconhecem igualmente o direito do capital de adquirir
cada vez mais terras, recursos naturais, equipamentos, fábricas etc. Nenhuma
contrapartida por parte das multinacionais: elas não têm obrigação alguma para
com os países e podem disparar processos quando e onde lhes convier.
Alguns
investidores têm uma concepção muito ampla de seus direitos inalienáveis. Vimos
recentemente empresas europeias moverem processos contra o aumento do salário
mínimo no Egito ou contra a limitação das emissões tóxicas no Peru.6 Outro
exemplo: a gigante dos cigarros Philip Morris, incomodada pelas legislações
antifumo do Uruguai e da Austrália, representou contra esses dois países diante
de um tribunal especial. O grupo farmacêutico norte-americano Eli Lilly
pretende fazer justiça contra o Canadá, culpado de ter criado um sistema de
patentes que torna certos medicamentos mais acessíveis. O fornecedor de
eletricidade sueco Vattenfall exige vários bilhões de euros da Alemanha por sua
“virada energética”, que enquadra mais severamente as centrais de carvão e
promete o abandono da energia nuclear.
Não há
limite para as penalidades que um tribunal pode impor a um Estado em benefício
de uma multinacional. Há um ano, o Equador se viu condenado a pagar a soma
recorde de 2 bilhões de euros para uma companhia petrolífera.7 Mesmo quando os
governos ganham o processo, eles devem pagar as custas judiciais e as comissões
diversas, que atingem em média US$ 8 milhões, de forma que os poderes públicos
muitas vezes preferem negociar com o queixoso que defender sua causa no
tribunal. Assim, o governo canadense evitou uma convocação para os tribunais
anulando rapidamente a proibição de um aditivo tóxico utilizado pela indústria
petrolífera.
No
entanto, as reclamações não param de crescer. De acordo com a Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o número de casos
sujeitos aos tribunais especiais foi multiplicado por dez desde o ano 2000.
Desde que foi criado na década de 1950, o sistema de arbitragem comercial nunca
prestou tantos serviços aos interesses privados quanto em 2012, ano recorde em
termos de abertura de casos. Esse boom criou um florescente viveiro de
consultores financeiros e de advogados da área empresarial.
O projeto
do grande mercado americano-europeu é apoiado há muitos anos pelo Diálogo Transatlântico
de Negócios (TABD, na sigla em inglês), um lobby mais conhecido hoje pelo nome
de Transatlantic Business Council (TBC). Criado em 1995 sob o patrocínio da
Comissão Europeia e da Secretaria do Comércio norte-americana, esse fórum de
empresários ricos faz campanha por um “diálogo” altamente construtivo entre as
elites econômicas dos dois continentes, o governo de Washington e os
comissários de Bruxelas. O TABD é um fórum permanente que permite às
multinacionais coordenar seus ataques contra os políticos que ainda estão de pé
em ambos os lados do Atlântico.
Seu
objetivo, público, é eliminar o que chama de “discórdias comerciais” (trade
irritants), ou seja, operar nos dois continentes sob as mesmas regras e sem
interferência dos poderes públicos. “Convergência regulatória” e
“reconhecimento mútuo” fazem parte dos painéis semânticos que o TABD exibe para
encorajar os governos a permitir produtos e serviços que contrariam as
legislações locais.
“Injusta
rejeição ao cloridrato de ractopamina”
Mas, em
vez de defender uma simples flexibilização das leis existentes, os ativistas do
mercado transatlântico se propõem a reescrevê-las eles mesmos. Assim, a Câmara
Americana de Comércio e o BusinessEurope, duas das maiores patronais do
planeta, pediram aos negociadores da TTIP que reunissem em torno de uma mesa de
trabalho um grupo de grandes acionistas e políticos para que “redijam juntos os
textos de regulamentação”, que terão em seguida força de lei nos Estados Unidos
e na União Europeia. É de perguntar, também, se a presença dos políticos na
oficina de escrita comercial é realmente indispensável...
De fato,
as multinacionais exibem uma notável franqueza na declaração de suas intenções
− por exemplo, na questão dos transgênicos. Enquanto nos Estados Unidos um
estado em cada dois planeja tornar obrigatório um rótulo que indique a presença
de organismos geneticamente modificados (OGMs) em um alimento – medida desejada
por 80% dos consumidores do país –, os industriais do setor agroalimentar
batalham pela proibição da rotulagem. A Associação Nacional dos Confeiteiros
não mediu palavras: “A indústria norte-americana gostaria que a TTIP avançasse
nessa questão, eliminando a rotulagem OGM e as normas de rastreabilidade”. Por
sua vez, a muito influente Associação da Indústria de Biotecnologia (BIO, na
sigla em inglês), da qual faz parte a Monsanto, fica indignada pelo fato de
produtos contendo transgênicos e vendidos nos Estados Unidos poderem obter uma
resposta negativa no mercado europeu. Consequentemente, ela espera que o “fosso
que se alarga entre a desregulamentação de novos produtos biotecnológicos nos
Estados Unidos e sua acolhida na Europa” seja rapidamente preenchido.8 A
Monsanto e seus amigos não escondem a esperança de que a zona de livre-comércio
transatlântica permita enfim impor aos europeus seu “catálogo abundante de
produtos OGM que aguardam aprovação”.9
A
ofensiva não é menos vigorosa na área da vida privada. A Coalizão do Comércio
Digital (DTC, na sigla em inglês), que agrupa industriais da internet e da alta
tecnologia, pressiona os negociadores da TTIP a remover as barreiras que
impedem os fluxos de dados pessoais de se espalhar livremente da Europa para os
Estados Unidos. “O ponto de vista atual da UE, segundo o qual os Estados Unidos
não oferecem uma proteção ‘adequada’ da vida privada, não é razoável”,
impacientam-se os lobistas. À luz das revelações de Edward Snowden sobre o
sistema de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em
inglês), essa opinião não deixa de fazer sentido. No entanto, ela não se iguala
à declaração do US Council for International Business, um grupo de empresas que
alimentaram maciçamente a NSA com dados pessoais: “O acordo deveria procurar
circunscrever as exceções, como a segurança e a vida privada, para garantir que
elas não sirvam como entraves disfarçados ao comércio”.
As normas
de qualidade na alimentação também são tomadas como alvo. A indústria de carnes
dos Estados Unidos pretende obter a supressão da regra europeia que proíbe
frangos desinfectados com cloro. Na vanguarda dessa luta, o grupo Yum, dono da
cadeia de fast-food KFC, pode contar com o poder de fogo das patronais. “A UE
autoriza somente o uso da água e do vapor de água nas carcaças”, protesta a
Associação Americana da Carne, enquanto outro grupo de pressão, o Instituto
Americano da Carne, lamenta a “recusa injustificada [por Bruxelas] das carnes
com adição de beta-agonistas como o cloridrato de ractopamina”. A ractopamina é
uma droga usada para inflar o teor de carne magra em suínos e bovinos. Por
causa dos riscos para a saúde dos animais e dos consumidores, ela é proibida em
160 países, incluindo membros da União Europeia, a Rússia e a China. Para a
indústria de carne de porco norte-americana, essa medida de proteção constitui
uma distorção da livre concorrência na qual a TTIP deve colocar um fim com
urgência.
“Os
produtores de carne suína dos EUA não aceitarão nenhum outro resultado que não
seja o levantamento do embargo europeu da ractopamina”, ameaça o Conselho
Nacional dos Produtores de Porco (NPPC, na sigla em inglês). Durante esse
tempo, do outro lado do Atlântico, os industriais do BusinessEurope denunciam
as “barreiras que afetam as exportações europeias para os Estados Unidos, como
a lei sobre a segurança alimentar”. Desde 2011, esta permite que os serviços de
controle retirem do mercado produtos de importação contaminados. Mais uma vez,
os negociadores da TTIP são convidados a fazer tábua rasa disso.
O mesmo
acontece com as emissões de gases de efeito estufa. A organização Airlines for
America (A4A), o braço armado dos transportes aéreos norte-americanos,
estabeleceu uma lista de “regulamentações inúteis que trazem prejuízo
considerável à indústria” e que a TTIP, é claro, poderia riscar do mapa. No
topo dessa lista está o sistema europeu de troca de cotas de emissões, que
obriga as companhias aéreas a pagar por sua poluição de carbono. Bruxelas
suspendeu temporariamente esse programa; a A4A exige a supressão definitiva em
nome do “progresso”.
Mas é no
setor financeiro que a cruzada dos mercados é mais virulenta. Cinco anos após a
eclosão da crise dos subprimes, os negociadores concordaram que as veleidades
de regulação da indústria financeira já tiveram seu tempo. O quadro que eles
desejam colocar em prática prevê remover todas as barreiras em matéria de
investimentos de risco e impedir os governos de controlar o volume, a natureza
e a origem de produtos financeiros colocados no mercado. Em suma, trata-se pura
e simplesmente de eliminar do mapa a palavra regulação.
De onde
vem esse extravagante retorno aos velhos tempos thatcheristas? Em particular,
ele responde aos desejos da Associação de Bancos Alemães, que não deixa de
expressar suas “preocupações” com a reforma, ainda que tímida, de Wall Street
adotada no rescaldo da crise de 2008. Um de seus membros mais empreendedores
sobre essa questão é o Deutsche Bank, que recebeu, em 2009, centenas de bilhões
de dólares do Federal Reserve em troca de títulos lastreados em hipotecas.10 O
mastodonte alemão quer acabar com a regulamentação Volcker, a pedra angular da
reforma de Wall Street, que exerce, segundo ele, “uma pressão pesada demais
sobre os bancos não americanos”. A Insurance Europe, a ponta de lança das
empresas de seguros europeias, deseja de seu lado que a TTIP “remova” as garantias
colaterais que dissuadem o setor de se aventurar em investimentos de alto
risco.
Já o
Fórum dos Serviços Europeu, patronal da qual faz parte o Deutsche Bank, trava
há anos conversas de bastidores para que as autoridades de controle
norte-americanas parem de enfiar o nariz nos assuntos dos grandes bancos
estrangeiros que operam em seu território. Do lado dos Estados Unidos,
espera-se sobretudo que a TTIP venha a enterrar para sempre o projeto europeu
de taxação sobre as transações financeiras. O caso parece estar contornado,
posto que a própria Comissão Europeia considerou que a taxa não está de acordo
com as regras da OMC.11 Na medida em que a zona de livre-comércio
transatlântica promete um liberalismo ainda mais desenfreado que o da OMC, e
como o Fundo Monetário Internacional (FMI) se opõe sistematicamente a qualquer
forma de controle sobre os movimentos de capitais, a frágil “taxa Tobin” não
preocupa mais muita gente nos Estados Unidos.
Mas o
canto de sereia da desregulamentação não se faz ouvir apenas na indústria
financeira. A TTIP tenciona abrir para a concorrência todos os setores
“invisíveis” ou de interesse geral. Os países signatários se veriam obrigados
não só a submeter seus serviços públicos à lógica do mercado, mas também a
renunciar a qualquer intervenção sobre os prestadores de serviços estrangeiros
que cobiçam seus mercados. As margens de manobra política em matéria de saúde,
energia, educação, água ou transporte seriam reduzidas a um fio. A febre
comercial também não poupa a imigração, já que os instigadores da TTIP se
arrogam a competência de estabelecer uma política comum nas fronteiras – sem
dúvida para facilitar a entrada daqueles que têm um bem ou um serviço para
vender, em detrimento de outros.
Nos
últimos meses, o ritmo das negociações se intensificou. Em Washington, há boas
razões para acreditar que os líderes europeus estão dispostos a fazer qualquer
coisa para reviver um crescimento econômico moribundo, ainda que à custa de uma
negação de seu pacto social. O argumento dos defensores da TTIP, segundo o qual
o livre-comércio desregulamentado facilitaria as trocas comerciais e seria,
portanto, gerador de empregos, aparentemente pesa mais do que o medo de um
terremoto social. As barreiras tarifárias que ainda persistem entre a Europa e
os Estados Unidos são, no entanto, “já bastante baixas”, como reconheceu o
representante de Comércio dos Estados Unidos.12 Os próprios artífices da TTIP
admitem que seu principal objetivo não é reduzir as restrições alfandegárias,
de qualquer maneira insignificantes, mas impor “a eliminação, a redução e a
prevenção de políticas nacionais supérfluas”,13 sendo considerado “supérfluo”
tudo que retarda o escoamento de bens, tais como a regulação financeira, a luta
contra o aquecimento global e o exercício da democracia.
É verdade
que os poucos estudos consagrados às consequências da TTIP quase não se detêm
sobre suas consequências sociais e econômicas. Um relatório frequentemente
citado, oriundo do Centro Europeu de Economia Política Internacional (Ecipe, na
sigla em inglês), afirma, com a autoridade de um nostradamus de escola de
comércio que a TTIP vai fornecer à população do mercado transatlântico um
aumento de riqueza de 3 centavos per capita e por dia... a partir de 2029.14
Apesar de
seu otimismo, o mesmo estudo estima em apenas 0,06% a alta do PIB na Europa e
nos Estados Unidos após a entrada em vigor da TTIP. Mesmo tal “impacto” é
altamente irreal, já que seus autores postulam que o livre-comércio “dinamiza”
o crescimento econômico − uma teoria regularmente refutada pelos fatos. Além
disso, uma elevação tão infinitesimal seria imperceptível. Em comparação, o
lançamento do iPhone5 da Apple levou os Estados Unidos a um aumento oito vezes
mais significativo do PIB.
Quase
todos os estudos sobre a TTIP foram financiados por instituições favoráveis ao
livre-comércio ou por organizações empresariais, razão pela qual os custos
sociais do tratado não aparecem neles, assim como suas vítimas diretas, que, no
entanto, se poderiam contar em centenas de milhões. Mas os jogos ainda não
foram jogados. Como o mostraram as desventuras da AMI, da Alca e de algumas
rodadas de negociações da OMC, o uso do “comércio” como um cavalo de troia para
desmantelar as proteções sociais e instaurar a junta dos encarregados de negócios
fracassou em várias ocasiões no passado. Nada diz que o mesmo não acontecerá
desta vez.
*Lori Wallach, Diretora do Public Citizen’s Global Trade Watch.
Ilustração:
Daniel Kondo
1 Ler “Le
nouveau manifeste du capitalisme mondial” [O novo manifesto do capitalismo
global], Le Monde Diplomatique, fev. 1998.
2 “Some
secrecy needed in trade talks: Ron Kirk” [Algum sigilo necessário nas
negociações comerciais: Ron Kirk], Reuters, 13 maio 2012. 3 “Elizabeth Warren
opposing Obama trade Nominee Michael Froman” [Elizabeth Warren se opõe ao
representante de Obama para o Comércio Michael Froman], Huffingtonpost.com, 19
jun. 2013.
4 “Table of foreign investor-state cases and claimsunder NAFTA and other
US ‘trade’ deals” [Tabela
de casos
e reclamações investidor-Estado estrangeiros sob o Nafta e outros acordos
“comerciais” dos Estados Unidos], Public Citizen, Washington, ago. 2013.
5 “Treaty
disputes roiled by bias charges” [As disputas do tratado perturbadas por
acusações de viés], Bloomberg, 10 jul. 2013.
6 “Renco
uses US-Peru FTA to evade justice for La Oroya pollution” [A Renco usa tratado
de livre-comércio entre Estados Unidos e Peru para escapar da justiça pela
poluição de La Oroya], Public Citizen, 28 nov. 2012.
7
“Ecuador to fight oil dispute fine” [O Equador vai contestar multa de disputa
de petróleo], AFP, 13 out. 2012.
8
Comentários sobre o acordo para a TTIP, documento do BIO, Washington, DC, maio
2013.
9 “EU-US high level working group on jobs and growth. Response to consultation by
EuropaBio and BIO” [Grupo de trabalho de alto nível UE-EUA sobre os empregos e
o crescimento. Resposta à consulta feita por EuropaBio e BIO]. Disponível em: .
10 “FED
opens books, revealing European megabanks were biggest beneficiaries” [FED abre
livros, revelando que megabancos europeus foram os maiores beneficiários],
HuffingtonPost.com, 10 jan. 2012.
11
“Europe admits speculation taxes a WTO problem” [A Europa admite que os
impostos sobre a especulação são um problema para a OMC], Public Citizen, 30
abr. 2010.
12 Carta
de Demetrios Marantis, representante de Comércio dos EUA, a John Boehner,
porta-voz republicano na Câmara dos Deputados, Washington, 20 mar. 2013.
13 “Final report. High level working group on jobs and growth”
[Relatório final. Grupo de
trabalho de alto nível sobre os empregos e o crescimento], 11 fev. 2013.
14
“TAFTA’s trade benefit: a candy bar” [Benefício do comércio Tafta: uma barra de
chocolate recheado], Public Citizen, 11 jul. 2013.
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