sábado, 5 de outubro de 2019

Mercosul, Brasil/Relações perigosas: conexões que consolidam governos de extrema-direita


Por Erika Morhy


A historiadora Flávia Biroli (UNB) defende o fortalecimento do sistema partidário e da mobilização popular para enfrentar a aliança entre forças conservadoras, inseguranças populares e desmonte de estados nacionais, que consolidam a ruptura do regime democrático. No Brasil bolsonaresco como na América do Sul e Europa

Duas próximas datas trazem à baila elementos cruciais para compreender a ascensão da extrema direita no Brasil: o “Dia latino-americano e caribenho de luta pela descriminalização e legalização do aborto”, neste sábado (28), e o marco de um ano da multitudinária marcha promovida pelo movimento brasileiro conhecido internacionalmente pela sentença “Ele não!”, no domingo (29). Os avanços na conquista por direitos à igualdade de gênero e diversidade sexual conectaram forças conservadoras de diversos segmentos sociais, inseguranças populares e estados nacionais combalidos pelo neoliberalismo, numa mobilização contra o próprio regime democrático. O sintomático discurso de posse do ex capitão Jair Bolsonaro à Presidência, prometendo o combate a uma fantasmagórica ideologia de gênero, está afinado ao tom de campanhas atávicas promovidas em outros países da América do Sul e Europa. É o que aponta Flávia Millena Biroli Tokarski, professora associada do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB) e presidenta da Associação Brasileira de Ciência Política.

A historiadora integrou o Grupo de Assessoras da Sociedade Civil da ONU Mulheres (2016-2017) e é autora de obras como Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff e Horizonte, 2013); Feminismo e democracia (com Luis Felipe Miguel, Boitempo, 2014), Família: novos conceitos (Perseu Abramo, 2014); e Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018).

Flávia Biroli concedeu entrevista exclusiva à Carta Maior durante sua estadia em Belém (PA), onde esteve para participar do Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política, realizado na Universidade Federal do Pará (UFPA). Ela indica fatos marcantes para essas conexões nos séculos XX e XXI e conclui sua análise com uma hipótese sobre os caminhos a seguir no brutal cenário brasileiro: “Não podemos construir a reação de costas para o sistema político partidário. Tem que ser no sistema partidário, em conjunto com a mobilização popular”.

O que é a crise democrática no cenário brasileiro atual?
Desde o início dos anos 2000, tem se voltado a pensar sobre processos de mudança nos regimes democráticos, que vêm se enfraquecendo sem que sejam necessárias interrupções bruscas. O caso brasileiro hoje é um caso típico de transformações no regime democrático: elas indicam que há processos de enfraquecimento da democracia por meio de mudanças institucionais. Mas, principalmente, por meio de uma restrição da pluralidade política, no que diz respeito ao modo como o debate público se organiza e como temáticas – a exemplo dos direitos humanos e respeito a minorias - e a forma de organização da disputa interpartidária vêm se apresentando.

Existem episódios mais recentes: o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a prisão do ex-presidente Lula e o processo eleitoral que alguns teóricos definem como atípico, culminando com a eleição de Jair Bolsonaro. Como você avalia esses episódios?
A literatura tem tratado da relação que existe entre a agenda neoliberal e como ele incide sobre as instituições democráticas, sobre a cultura democrática, sobre as subjetividades. Há também um processo de mais longo prazo no Brasil, em relação à descrença na política, no Estado, nas soluções coletivas, que ultrapassa esse momento que vem a partir de 2016 – se tomarmos a deposição da presidenta Dilma Rousseff como referência.

No caso brasileiro, a análise de um processo mais longo de enfraquecimento do caráter público da política precisa ser associada ao processo recente, que coloca em xeque o tipo de equilíbrio político-democrático e de pluralismo que nós tivemos durante todo o período da Nova República.

O momento de deposição da presidenta Dilma, independentemente de se considerar isso algo que se configura ou não um golpe, é o encerramento de um ciclo democrático. Desconsiderar esse processo impede que a gente compreenda as relações de poder no Brasil hoje e os riscos que existem do fechamento do regime democrático.

Qual a relação entre esse contexto brasileiro com o cenário político internacional?
Passa por compreender a perda de capacidade e legitimidade dos Estados nacionais, em um momento em que a globalização econômica concentra poder econômico, amplia a capacidade de interferência e orientação política por parte das grandes corporações e se direciona a grupos que constituem as elites políticas nacionais.

Neste sentido, o caso brasileiro não é peculiar. Pensando globalmente, parece que essa relação com o neoliberalismo é muito importante para compreender o que se passa com as democracias nos Estados nacionais. Quando a gente pensa regionalmente, é importante investigar mais o que tem havido com os regimes democráticos na América Latina, na América do Sul, especialmente, e como hoje se vê do ponto de vista das transformações econômicas globais.

Nacionalmente, temos esse processo específico que ocorre no Brasil desde os protestos de 2013, mas que tem a deposição da presidenta Dilma como evento muito relevante. O modo como o antipetismo foi construído, mobilizando os sentimentos antipolíticos que já existiam.

Ao mesmo tempo, considerar a conexão entre esse cenário nacional e o que tem ocorrido globalmente do ponto de vista do fortalecimento de lideranças antidemocráticas, contra liberais (em termos políticos), embora sejam em muitos aspectos neoliberais, em termos econômicos. E também no que diz respeito ao perfil dessas lideranças políticas que têm se fortalecido.

Se a gente pensa nas eleições de 2018, a gente tem chaves para o contexto nacional, chaves para o que tem se passado regionalmente, mas também uma chave que nos diz que há algo acontecendo do ponto de vista das crises das democracias, globalmente. Há perfis semelhantes de lideranças de direita e extrema direita.

É muito importante que se investigue as formas de insatisfação com a política e com a democracia liberal, que abre o canal para que essa antipolítica, que permite a mobilização antidemocrática, ganhe a força que ganhou.

Quem são os atores em campo e onde se coloca a força neopentecostal, por exemplo?
Falar dos efeitos do neoliberalismo hoje não é só falar em mudanças nos padrões de regulação do Estado, pró-mercado e na restrição dos investimentos públicos em soluções coletivas. É também falar de mudanças no horizonte de possibilidades percebido pelas próprias pessoas como alternativa viável.

Quando junta isso com o conservadorismo, aparece algo que eu tenho apostado como hipótese: a moralização das inseguranças com papel importante na construção de soluções antidemocráticas. As pessoas sentem, por razões legítimas, insegurança, mas o que se apresenta como alternativa, parece colocá-las numa posição de compreender que é necessário resgatar uma ordem imaginária anterior em relação a mudanças e transformações no cotidiano social e no cotidiano das relações familiares, afetivas, conjugais, parentais, sexuais. Nisso, o neopentecostalismo tem tido papel importante.

As campanhas contra a igualdade de gênero e a diversidade sexual têm sido visíveis no cenário político eleitoral, não só brasileiro. Muito fortemente no México, Colômbia, Peru, Paraguai, Chile, Uruguai, embora com efeitos diferentes. Na América Central, o caso da Costa Rica.

Essa campanha reúne diferentes setores conservadores. Entre os religiosos, essa ideia de que há algo a combater -- e que vem sendo representada pela ideologia de gênero -- tem unido setores evangélicos e católicos conservadores. Mas o neopentecostalismo é muito importante nessa conexão entre a insegurança social e a busca de alternativas privadas.

É quando a gente vê esse trânsito entre uma insegurança real e sua tradução em questões de ordem moral, como se o problema fosse da ordem da sexualidade, de que há maior demanda das mulheres por mais igualdade...

Qual a relação entre a agenda de gênero e a crise da democracia no Brasil e nos demais países?
É importante colocar a questão sobre quê conexão existe entre as campanhas contra a igualdade de gênero e diversidade sexual e os processos de transformação nas democracias globalmente e na América Latina. Estou falando dessas campanhas que têm tido como estratégia a ideia de que existe uma ideologia de gênero e de que ela é algo a combater, porque ameaçaria as famílias.

No caso da América Latina, aparece muito fortemente um caráter defensivo, protetor de valores locais, regionais, contra interesses obscuros, de grandes corporações e organizações internacionais, como a ONU. É uma noção que aparece também no leste da Europa, no centro da Europa, com entendimento de que a agenda da igualdade de gênero seria uma agenda colonialista.

O colonialismo sempre foi algo que se trabalhou desde uma perspectiva crítica, democrática. Essa noção foi incorporada a essas campanhas contra a ideologia de gênero, com o entendimento de que essa agenda não é nossa.

A própria noção de democracia está em jogo, porque, por parte desses setores conservadores, a ideia que tem sido afirmada é que eles representam os valores populares contra uma elite. Eles têm mobilizado protestos populares, as lideranças em geral são evangélicas, mas esses protestos são contra a legislação que protege minorias; são contra uma fronteira mínima entre valores religiosos, democráticos e Estado laico; são contra políticas públicas para garantir condições mais igualitárias de vida para as mulheres e mesmo a proteção da integridade física e psíquica de mulheres e da população LGBT. A gente está falando de campanhas não só conservadoras, mas que colaboram para enfraquecer as democracias na região e que mobilizam a ideia de que são elas as portadoras do interesse do povo.

Onde você localiza essas manifestações?
A noção de ideologia de gênero surge em documentos que são produzidos nos Estados Unidos e na Argentina. Essa produção, ainda nos anos 1990, procura se contrapor à incorporação da noção de gênero nas conferências das Nações Unidas -- 1994, no Cairo, e 1995, em Beijing -- e principalmente em algo que é muito mais amplo, que é a incorporação da agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual no sistema internacional de direitos humanos.

A produção intelectual dos anos 1990 traz essa noção de ideologia de gênero, que apareceria em documento oficial do Vaticano, da Conferência Episcopal Peruana, em 1988. É a primeira vez. Ela passa de fato a entrar em debates no Legislativo e no âmbito dos executivos nacionais, na cobertura de mídia e em protestos de rua apenas nos anos 2000.

Tenho identificado dois ciclos de protestos. Um que se inicia em 2012, que é quando se cria o “Manif pour tous”, na França, movimento que leva milhares de pessoas às ruas, contra o casamento igualitário, aprovado em 2013. Também se abre o ciclo de protestos na Polônia, em 2012 e 2014. As eleições de 2015 elegem um governo de direita, que leva para dentro do Estado lideranças dessa campanha contra a chamada ideologia de gênero.

Na América Latina, esse ciclo de protestos de rua começa em 2016. A gente tem o caso da Colômbia, contra a educação sexual e contra o casamento igualitário. Essas manifestações colocam na cena pública a noção de ideologia de gênero, que é utilizada por aqueles atores que são contrários ao Acordo de Paz entre o governo colombiano e as Farc, que acaba sendo derrotado por 50,2% dos votos. Esses movimentos conseguem derrubar a ministra da Educação, responsável pela política que continha diretriz de educação sexual para as escolas, referenciada pela igualdade de gênero, pelo respeito à diversidade sexual.

Os protestos de 2016 acontecem no México. É quando se cria no Peru uma campanha importante regionalmente, que se chama “Con mis hijos no te metas”. A ideia é: elites internacionais e as elites nacionais que as representam estariam interferindo na criação das crianças e sexualizando essas crianças, numa perspectiva homossexual. Com isso, se cria um pânico e uma ideia de que às famílias cabe proteger as crianças. Esse proteger significa: os valores de cada família devem se sobrepor a políticas públicas referenciadas com noções de igualdade e respeito às diferenças.

Um dos maiores protestos acontece em março de 2017, no Peru. Mais de 25 mil pessoas no centro de Lima, enquanto há protestos em outras cidades também. Entre final de 2016 e segundo semestre de 2017, dois ministros da Educação são derrubados. 2017 é também o ano em que o governo do Paraguai proíbe a menção a gênero em qualquer conteúdo escolar.

2016 é quando a gente consegue observar como essa campanha vai sendo construída a partir de diferentes espaços. A Conferência Episcopal Peruana reedita aquele documento de 1998. É o momento em que o Papa Francisco fala na ideologia de gênero como um risco, quando se reúne com bispos poloneses no encontro da juventude, em Cracóvia. E é o momento de lançamento de uma produção não religiosa, que tem tido impacto regional significativo -- dois advogados e politólogos argentinos trabalham com a ideia de que existe um risco de colonização da América Latina por parte do marxismo cultural, que teria as teorias feministas como linha de frente.

A campanha vai se avolumando, fazendo incidência em processos políticos e, em 2018, ela é um elemento importante nas eleições no Brasil e na Costa Rica. A gente chega a 1º de janeiro de 2019 com um presidente de um grande país sulamericano, chamado Brasil, que, em seu discurso de posse, curtíssimo, diz que um dos objetivos do seu governo é conter a ideologia de gênero e o politicamente correto.

Como fica o contraponto? Tivemos no Brasil, em 2018, o movimento “Ele não”.
A campanha contra a ideologia de gênero é estratégia que reúne segmentos conservadores juntamente numa reação à ampliação de direitos no campo da sexualidade, da reprodução, da demanda por igualdade de gênero, que ganham espaço nos países latino americanos (mas não só) nos anos 1990. A aprovação de leis que permitem o matrimônio igualitário, na Argentina, Uruguai. Decisões de cortes constitucionais, como no Brasil, Colômbia e, mais recentemente, no Equador, que garantem o casamento igualitário. A descriminalização do aborto no Uruguai. A nova exceção, no caso brasileiro, do direito ao aborto em caso de anencefalia fetal, em 2012. E a incorporação da igualdade de gênero e diversidade sexual nos conteúdos escolares.

No caso da Colômbia, existe uma decisão da corte constitucional, a partir da ação de uma mãe, cujo filho se suicidou depois de ter passado por bulling seguidos, relacionados à sua sexualidade, nas escolas. Há uma decisão quanto à incorporação de conteúdos escolares de respeito à diversidade. É neste momento que existe uma reação, com lideranças evangélicas e católicas à sua frente. Uma deputada evangélica propôs criação de escolas apenas para crianças homossexuais. Você vai saindo do limite do que seria uma forma democrática de lidar com a diversidade, para normalizar a desigualdade, as violências.

Essa reação vem encontrando barreiras uma série de barreiras. Os movimentos feministas, os movimentos LGBT, mas também no âmbito do Judiciário, dos executivos de alguns países e do próprio Legislativo. O “Ele não” foi uma forte mobilização que mostrou a clareza das mulheres quanto às ameaças que estavam colocadas e estão colocadas no contexto político brasileiro. Eu não tenho dúvida de que foi o momento coletivo de maior força na análise crítica da ascensão da extrema direita no Brasil recentemente. O “Ele não” tem um enorme valor, mostrando essa mobilização das mulheres nesse sentido.

Qual o horizonte quanto ao avanço da desconstrução da democracia ou retorno de processos democráticos?
Temos um processo de legitimação das desigualdades, de pequenas rupturas com a democracia constitucional todos os dias. Vejo da mesma forma a naturalização do rompimento com a democracia constitucional quando se diz que os fins justificam os meios, no caso de ações por parte de juízes que rompam com preceitos constitucionais, inclusive da sua função. E a naturalidade com que determinados setores, que creio serem minoritários, acolhem noções relacionadas à desregulamentação do meio ambiente, das proteções trabalhistas e até mesmo a naturalização do trabalho infantil. São muitos elementos de caráter institucional e da regulação das relações cotidianas que vão sendo descontruídas naquilo que a gente achava que estava garantido.

A sociedade está se organizando pra enfrentar isso?
Temos resistências em diferentes pontos. O que me parece que não tem acontecido é uma capacidade de mobilização mais ampla conjunta. Talvez nosso tema, mais um vez, seja o da capacidade de mobilização das esquerdas com base numa agenda de defesa da democracia mais ampla.

Tivemos ampla mobilização contra os bloqueios de orçamento das universidades, por exemplo, que se mostrou em defesa do sistema público universitário, de evidências sobre o que é esse sistema público – porque a gente está diante do tempo todo de mentiras. Tivemos também representantes do campo progressista, que têm atuado muito fortemente dentro do Congresso, das assembleias estaduais.

A gente vem de um processo muito forte de desconstrução da esquerda, que tem no antipetismo um pé central. Não podemos construir a reação de costas para o sistema político partidário. Tem que ser no sistema partidário, em conjunto com a mobilização popular.

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