terça-feira, 2 de março de 2010

HAITI É CREDOR, NÃO DEVEDOR

Se acreditamos nos Ministros das Finanças do G-7, então o Haiti está a caminho de receber algo que já merecia há muito tempo: o "perdão" da sua divida externa. Em Port-au-Prince, o economista haitiano Camille Chalmers tem seguido estes acontecimentos com um otimismo cauteloso.

1 março 2010/Vermelho http://www.vermelho.org.br

Por Naomi Klein*, em The Nation

O cancelamento da divida é um bom começo, disse à Al Jazeera na sua versão anglo-saxónica, mas "é tempo de ir mais longe. Temos que falar sobre compensações e indenizações para as consequências devastadoras da dívida."

Dito isto, a ideia de que o Haiti é um devedor, precisa ser abandonada. O Haiti, argumenta, é um credor - e somos nós, no Ocidente, que estamos atrasados com o pagamento das nossas obrigações.

A nossa dívida com o Haiti provêm de quatro fontes: escravatura, a ocupação dos Estados Unidos, ditadura e alterações climáticas. Estas reclamações não são ficção, nem meramente retóricas. Elas baseiam-se em múltiplas violações de normas e acordos legais. Ficam aqui resumidamente, destaques do caso Haitiano.

A divida da Escravatura
Quando os Haitianos conseguiram a independência de França em 1804, eles tinham todo o direito de exigir compensações do poder que lucrou durante trezentos anos com o roubo do trabalho de terceiros. A França, apesar de tudo, estava convencida que eram os haitianos que tinham roubado a propriedade dos donos de escravos por se recusarem a trabalhar de graça.

Então em 1825, com uma frota de navios de guerra que atracou na costa haitiana, ameaçando voltar a escravizar a antiga colônia, o rei Carlos X foi recolher: 90 milhões de francos em ouro - dez vezes a receita anual do Haiti nessa época. Sem qualquer hipótese de recusar, e sem uma forma de pagar, a jovem nação foi algemada a uma divida que ia demorar 122 anos a pagar.

Em 2003, o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide, face a um embargo econômico agonizante, anunciou que o Haiti ia processar o governo francês pelo roubo perpetrado no passado. "O nosso argumento", disse o antigo advogado de Aristide, Ira Kurzban, "foi de que o tratado era um acordo inválido por se basear na ameaça de re-escravização, numa altura em que a comunidade internacional considerava a escravatura como um mal."

O governo francês ficou preocupado o suficiente para enviar um mediador a Port-au-Prince e tentar manter o caso fora dos tribunais. No final, apesar de tudo, o problema foi eliminado: enquanto se preparavam para o julgamento, Aristide foi derrubado do poder. O processo legal desapareceu, mas para muitos haitianos o pedido de compensações continua.

A divida da Ditadura
De 1957 a 1986, o Haiti foi governado pelo regime desafiantemente cleptocrático de Duvalier. Ao contrário da dívida francesa, o caso contra Duvalier foi a vários tribunais, que seguiram os fundos haitianos até uma elaborada rede de contas bancárias na Suíça e luxuosas propriedades. Em 1988 Kurzban ganhou um caso importante contra Jean-Claude "Baby Doc" Duvalier, quando um tribunal distrital dos Estados Unidos em Miami determinou que o governante deposto "desviou mais de 504 milhões de dólares de fundos públicos."

É por isso natural que os haitianos continuem à espera que se faça justiça - mas este foi apenas o começo das suas perdas. Durante mais de duas décadas, os credores insistiram que os haitianos pagassem as enormes dívidas contraídas por Duvalier, estimadas em 844 milhões de dólares, grande parte das quais pertencia a instituições como o FMI e o Banco Mundial. Só no serviço da divida, os haitianos pagaram dezenas de milhões de dólares todos os anos.

Era legal para os credores estrangeiros cobrar as dividas de Duvalier, sendo que grande parte nunca foi gasta no Haiti? Muito pouco provável. Como afirma Cephas Lumina, o perito independente em dívida externa das Nações Unidas, "O caso do Haiti é um dos melhores exemplos da dívida odiosa no mundo. Por essa razão, a dívida devia ser cancelada incondicionalmente"

Mas, mesmo que o Haiti cancele a totalidade da dívida (um grande mas), isso não extingue o direito de ser compensado pelas dívidas ilegais já coletadas.

A dívida climática
Apoiado por um grande número de países em desenvolvimento na cimeira de Copenhague, o caso da dívida climática é simples. Os países ricos que falharam espetacularmente em resolver a crise climática que causaram estão em dívida com os países em desenvolvimento que pouco fizeram para causar a crise, mas estão desproporcionalmente a enfrentar os problemas.

Em suma: o poluidor paga. O Haiti tem um argumento irrefutável. As suas contribuições para o aquecimento global são diminutas; as emissões de CO2 per capita no Haiti são apenas 1 por cento das emissões dos Estados Unidos. Contudo, o Haiti está entre os países mais atingidos - de acordo com um índice, apenas a Somália é mais vulnerável às alterações climáticas.

A vulnerabilidade do Haiti às alterações climáticas não se deve unicamente - nem sequer principalmente - à sua geografia. Sim,o país enfrenta tempestades cada vez mais devastadoras. Mas é a debilidade das infra-estruturas haitianas que transforma desafios em desastres e desastres em enormes catástrofes.

O terramoto, apesar de não estar ligado às alterações climáticas, é um excelente exemplo. E é aqui que as dívidas ilegais podem extrair o custo mais elevado. Cada pagamento a um credor estrangeiro é dinheiro que não foi utilizado para uma estrada, uma escola, uma linha eléctrica.

E essa mesma dívida ilegítima incrementa o poder do FMI e do Banco Mundial para impor onerosas condições a cada empréstimo, fazendo com que o Haiti não regule a sua economia e reduza ainda mais o sector público. Ao falhar o cumprimento dessas condições, foi punido com um embargo à ajuda de 2001 até 2004, a sentença de morte para a esfera publica haitiana.

Esta história precisa ser confrontada agora, porque ameaça repetir-se. Os credores do Haiti já estão a usar a desesperada necessidade de ajuda ao terramoto para pressionar a produção no setor do vestuário com a quintuplicação da produção, um dos trabalhos mais explorados no país.

Os haitianos não tem importância nestas conversações, porque eles são considerados como passivos receptores de ajuda, e não como participantes dignos e plenos num processo de reparação e indenização.

Um cálculo das dividas que o mundo tem para com o Haiti podia mudar radicalmente esta dinâmica venenosa. É aqui que começa o verdadeiro caminho para a reparação: reconhecendo o direito dos haitianos a receber compensações.

*Naomi Klein é escritora canadense

Fonte: The Nation. Reproduzido no Esquerda.net

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