Aldo Fornazieri
Cientista
político e professor da Fundação Escola
de
Sociologia e Política (FESPSP)
A
sociedade brasileira mergulha num crescente mal-estar com o governo Bolsonaro.
Alguns milhões de eleitores do presidente estão perplexos com as suas
desastradas ações e declarações, com sua falta de decoro e de civilidade.
Muitos se arrependeram do voto que depositaram na urna e se sentem culpados por
terem conduzido o Brasil a esta situação. Cresce o medo em relação ao futuro,
pois a quebra de expectativas em relação ao governo afeta o desempenho da
economia e gera um ambiente social negativo. O consumo já está se retraindo e a
fome voltou a se fazer sentir com força. O que se constata, de forma crescente,
é que o Brasil tem um governo que é contra a sociedade e uma sociedade que é
contra o governo. Na medida em que a corda da tensão desse arco se estica a
cada dia que passa, tudo indica que haverá um ponto de ruptura no futuro, pois,
o mal-estar, a falta de perspectivas e a falta de futuro não podem continuar
indefinidamente.
O
governo definiu duas prioridades para este ano: a reforma da Previdência de
Paulo Guedes, e o pacote anticrime de Sérgio Moro, que eram tidos como dois superministros,
mas que foram engolfados pelo início desastroso do governo. Os dois projetos
são contra a sociedade. A proposta de reforma da Previdência ataca direitos dos
mais pobres, a exemplo do BPC e da aposentadoria rural, e criará gerações
futuras de idosos desprotegidos por conta da vontade de impor um regime de
capitalização. A parte mais desprotegida da sociedade, os mais pobres e as
mulheres, são os setores que mais refutam essa proposta de reforma da
Previdência. Considerando a sociedade em geral, 51% são contra e 41% são a
favor da reforma.
Em
relação à segunda prioridade – o pacote anticrime de Moro – a discordância da
sociedade com o governo ganha amplitude maior. Neste ponto, na verdade, a
sociedade se volta contra Moro, contra Bolsonaro e contra o governador Witzel,
entre outros. Essa turma incentiva a violência indiscriminada de quem está
armado contra uma sociedade cada vez mais indefesa, principalmente nos seus
setores mais vulneráveis: novamente pobres, mulheres e jovens.
Pesquisa do Datafolha mostra que 64% dos brasileiros querem a proibição da venda de armas e 72% refutam a tese de que a sociedade se sente mais segura com as pessoas armadas. Já 81% entendem que a polícia não pode atirar livremente em suspeitos, 79% defendem que policiais que matam precisam ser investigados e 82% sustentam que aquele que atira em alguém por estar muito nervoso deve ser punido. O fuzilamento do músico Evaldo, com 80 tiros disparados por soldados do Exército, e as mortes quase diárias por balas perdidas ou equívocos de policiais são fatos contundentes e mostram que é preciso dar um basta nesta carnificina estimulada por Bolsonaro, Moro e Witzel. Eles respaldam, com suas propostas, a matança indiscriminada. De qualquer forma, esses dados da pesquisa, entre outros, são uma refutação veemente das propostas desse trio que quer ampliar o campo de batalha e de morte em que o Brasil já está transformado.
Mas
a sociedade não está apenas contra as duas prioridades do governo. Está contra
o próprio governo, como mostram as pesquisas de avaliação dos primeiros 100
dias da nova gestão. O fato de Bolsonaro ter vencido as eleições no segundo
turno não lhe deu a maioria absoluta dos votos da totalidade do eleitorado. Se
forem somados os votos recebidos por Haddad com aqueles brancos, nulos e
abstenções se verá que sólida maioria dos brasileiros não votou em Bolsonaro.
Ele recebeu 57,7 milhões de votos, contra 47 milhões em Haddad e uma soma de
42,1 milhões de eleitores que votaram branco, nulo ou se abstiveram. Ou seja:
89,1 milhões de eleitores não votaram em Bolsonaro. Mas as pesquisas mostram
que até mesmo eleitores que votaram em Bolsonaro começam a se voltar contra o
seu governo.
Não
há democracia sem participação popular, sem a participação na esfera pública da
sociedade civil organizada. Bolsonaro age para desarticular essa parca
participação da sociedade brasileira. Primeiro, emitiu decretos para
enfraquecer os sindicatos. Depois, por novo decreto, suspendeu os Conselhos
participativos da sociedade em várias esferas da atividade governamental. Agora
pretende atacar as agremiações estudantis retirando-lhe a prerrogativa de
emitir carteiras de estudante. As várias ações somadas do governo de cunho
antiparticipativo e antissocial apontam para uma intenção deliberada de enfraquecer
e sufocar a sociedade, suas organizações e seus movimentos. Quanto mais fraca e
quanto menos participativa a sociedade, mas liberdade terá o governo para
promover o seu arbítrio.
Os
ditadores governam com minorias contra maiorias, embora isto não seja
exclusividade deles. Os primeiros sinais de que Bolsonaro optaria por governar
com uma minoria contra a sociedade vieram no dia da posse e, depois, se
multiplicaram ao longo dos 100 primeiros dias. Bolsanaro optou por um discurso
e por atitudes divisionistas, de guerra ideológica, de desunião do país. Não
emitiu nenhum sinal de que pretendia unir o país, de que encetaria um diálogo
democrático e de que buscaria ampliar apoios na sociedade. Pelo contrário: com
mentiras, se esmerou em alimentar a divisão e o ódio e não passa dia sem que
faça um ataque ideológico. Nem mesmo no Congresso buscou construir uma base de
apoio, dividindo os congressistas entre os adeptos da "velha
política" em contraposição aos iluminados da "nova política". É de
duvidar de que os encontros quem vem mantendo com líderes e presidentes de
partidos tenham propósitos sinceros e não manipulatórios para depois se
justificar em face de um possível fracasso da reforma da Previdência.
Portador
de uma mentalidade ditatorial – não por a caso elogia ditadores sanguinários -
Bolsonaro não se preocupa muito com as avaliações da opinião pública. Não se
preocupa com a liturgia e o decoro do cargo. Não se preocupa com a pertinência
ou impertinência de suas palavras. Não se preocupa se suas relações com outros
governos podem ou não provocar danos graves aos interesses do Estado e do
Brasil enquanto nação. Desprovido de qualquer prudência, a sua preocupação
central é a sua vontade, definida pela sua visão de mundo, pela sua ideologia.
As ações de Bolsonaro não se definem por um suposto mero despreparo. Elas se
definem por uma vontade ideológica autoritária e nisto reside todo o perigo que
ele representa.
Em
quase todos os ditadores se perceberam atitudes que resvalavam para as
sandices, para as esquisitices para um modo doentio de ser. Não por acaso,
Bolsonaro dorme com a arma ao lado da cama. Isto significa que ele não confia
em ninguém, que vê inimigos por todos os lados, que tem um caráter intolerante.
Na origem de cada ditadura o que menos importam são os planos de governo, a
racionalidade da administração. Os ditadores, no começo, agem, com discurso
moralista, para consolidar sua ideologia em nome do combate a inimigos que
podem variar segundo as circunstâncias. No final, terminam como tiranos corruptos.
Os
políticos vocacionados às ditaduras tornam-se cada vez mais perigosos à medida
crescente do seu isolamento. Começam a intervir em quase todas as partes da
administração e em quase todos os assuntos. Bolsonaro quer opinar sobre o exame
do Enem, sobre vídeos de educação sexual de adolescentes, intervém de forma
intempestiva na Petrobras, cancela ações do Ibama de combate à exploração
ilegal de madeira, manda suspender a implantação de oito mil radares pelas
rodovias da morte que cruzam o Brasil, perdoa o holocausto, critica a China
(nosso maior parceiro comercial), manda demitir e nomear assessores e quadros
técnicos em ministérios e outras repartições públicas.
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