1 julho 2016, ODiario.info http://www.odiario.info
(Portugal)
Jornalista,
correspondente do Ásia Times
Há uma receita de grande eficácia a que amiúde se
recorria em Portugal nos anos negros do fascismo: «se não sabes onde te colocar
olha para a posição dosfascistas: toma a posição contrária à deles e acertas».
Também hoje a Troika, a Comissão Europeia, o FMI, os jornais do dr. Balsemão, a RTP, a TVI… nos podem dizer que «as consequências geopolíticas do “Brexit” podem ser dramáticas». Mas a verdade é que para as encarar do ponto de vista da esquerda, do ponto de vista da classe trabalhadora, de todos os que não estão posicionados na estrutura de comando do capital, devemos lembrar-nos «que a UE nunca foi a “Europa dos Povos”».
Então, o que começou
como chantagem feita por David Cameron e válvula de escape para o
descontentamento dos britânicos, a ser usado como alavanca para barganhar com
Bruxelas e arrancar mais alguns poucos favores, entrou em metástase e se
converteu em espantoso terremoto político que tem tudo a ver com a
desintegração da União Europeia.
O irrepreensivelmente
medíocre Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, fazendo pose de
“historiador”, alertou que o Brexit “pode ser o começo da
destruição não só da União Europeia, mas
da civilização política ocidental na
totalidade.”
Bobagem. Está claro que
a causa do Brexit é a imigração, estúpido. E mais uma vez é a
economia, estúpido (embora o establishment britânico neoliberal jamais
tenha dado atenção a isso). Mas pode-se apostar dinheiro sério em que o sistema
da União Europeia em Bruxelas nada aprenderá dessa terapia de choque – e não se
autorreformará. Haverá racionalizações de que afinal de contas o Reino Unido
classicamente sempre reclamou demais, sempre se opunha a tudo e vivia a exigir
privilégios extras nas negociações com a UE. Quanto à “civilização política
ocidental”, o que acabará – e, sim, é grande evento – é o relacionamento
transatlântico especial entre EUA e UE com a Grã-Bretanha lá enfiada como
Cavalo de Troia dos norte-americanos. (…)
Como seria de prever, a
Escócia votou “Fica” e pode fazer outro referendo – e separar-se do Reino Unido
– antes de deixar-se expulsar pelos votos dos trabalhadores ingleses brancos.
Na Irlanda, o Sinn Fein [herdeiro do Exército Republicano Irlandês-IRA] já quer
plebiscito pela unidade do país [o que implicaria em separar a Irlanda do Norte
do Reino Unido]. Dinamarca, Holanda e até Polônia e Hungria quererão status
especial dentro da União Europeia, porque senão… Por toda a Europa, a direita
movimenta-se como estouro da boiada. Marine Le Pen quer um referendo francês.
Geert Wilders quer um referendo holandês. Quanto à vasta maioria dos britânicos
com menos de 25 anos, que votaram “Fica”, talvez considerem viagem só de ida,
não para o continente, mas ainda mais adiante.
Mostre-me o povo
O historiador
anglo-francês Robert Tombs observou que, quando europeus falam sobre história,
referem-se ao Império Romano, à Renascença e ao Século das Luzes. Passam pela
Grã-Bretanha como se nem existisse, de certo modo. Em troca, há britânicos que
ainda veem a Europa como entidade da qual se deve guardar distância segura.
Acrescente-se ao
problema que não se trata de uma “Europa de povos”. Bruxelas absolutamente
detesta a opinião pública europeia, e o sistema mostra resistência férrea a
qualquer reforma. Nesse projeto atual de União Europeia, que visa afinal a ser
uma federação modelada segundo os EUA, a Grã-Bretanha não se encaixa. Pode-se
dizer que aí está uma das razões chaves por trás do Brexit – que por sua vez já
desuniu o reino e pode eventualmente reduzi-lo a pequeno entreposto comercial
na beirada da Europa.
Sem “povo europeu”, o
sistema de Bruxelas só conseguiu articular-se como uma burocracia kafkiana, não
eleita. Além do mais, os representantes dessa Europa sem povo em Bruxelas
realmente defendem o que consideram que seja o interesse nacional deles, não o
interesse ‘europeu’.
Mas Brexit não
significa que a Grã-Bretanha ficará livre do que dite a Comissão Europeia (CE).
A CE sim, propõe a política, mas nada pode seguir adiante sem decisões do
Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros, que reúnem representantes de
todos os governos eleitos dos estados membros.
Pode-se argumentar que
um “Fica”, no melhor dos casos, teria levado a algum exame de consciência em
Bruxelas, e a um sinal de alerta, que talvez se traduzisse em política
monetária mais flexível; em impulso para conter os imigrantes atrás das
fronteiras africanas; e mais abertura em direção à Rússia. O Reino Unido
permaneceria numa Europa que daria mais peso a países fora da eurozona, e a
Alemanha concentrar-se-ia nas 19 nações membros da eurozona.
O “Fica” teria levado a
Grã-Bretanha a aumentar o próprio peso político econômico em Bruxelas, e a
Alemanha se abriria mais para algum crescimento moderado (em vez da
‘austeridade’). Mesmo que sempre se pudesse argumentar que a Grã-Bretanha
rejeitaria a noção de um futuro ministro do Tesouro da eurozona, de um FBI
europeu e de um ministro europeu do Interior – de fato, toda a noção de uma
completa união monetária e econômica.
Já são águas passadas.
Além do mais, não se pode esquecer o poderoso drama do mercado único.
A Grã-Bretanha não
perderá apenas o livre acesso ao mercado único europeu de 500 milhões de
pessoas; terá de renegociar todos e cada um dos tratados comerciais com o resto
do mundo, uma vez que todos eles foram negociados pela/na União Europeia. O
ministro da Economia da França e aspirante à presidência Emmanuel Macron já
alertou que “se a Grã-Bretanha quer um tratado de acesso comercial ao mercado
europeu, os britânicos têm de contribuir para o orçamento europeu, como fazem
noruegueses e suíços. Se London não concorda com isso, nesse caso tem de ser
saída total.” A Grã-Bretanha ficará excluída do mercado único – para o qual vão
mais de 50% de suas exportações –, a menos que pague quase tudo que paga
atualmente. Além disso e sobretudo, Londres terá ainda assim de aceitar a
liberdade de movimentos, tipo imigração europeia.
A City ganhou um olho roxo
A City ganhou um olho roxo
Brexit derrotou
conjunto espantoso do que Zygmunt Bauman definiu como as elites globais da
modernidade líquida: a City de Londres, o FMI, Wall Street, o Fed, o Banco
Central Europeu [ing. European Central Bank (ECB)], grandes fundos de hedge/investimentos,
todo o sistema interconectado do banking global.
Mais de 75% da City de
Londres, como era de prever, votou “Fica”. Espantosos US$2,7 trilhões são
negociados todos os dias na “milha quadrada”, que emprega quase 400 mil
pessoas. E não é só a milha quadrada, porque a City agora inclui também Canary
Wharf (quartel-general de vários grandes bancos) e Mayfair (local privilegiado
de convivência dos fundos hedge).
A City de
Londres – indiscutível capital financeira da Europa – também administra
espantoso $1,65 trilhão de fundos de clientes, riqueza, literalmente, de todos
os cantos do planeta.
Em Treasure Islands, Nicholas Shaxson diz
que “empresas de serviços financeiros voaram em bandos para Londres, porque
Londres as deixa fazer o que não podem fazer em casa.”
Desregulação sem
limites combinada a influência sem igual sobre o sistema econômico global é
mistura tóxica. Nessa direção, Brexit pode também ser interpretada
como um voto contra a corrupção que invadiu a mais lucrativa indústria da Inglaterra.
As coisas mudarão.
Dramaticamente. Não mais haverá “passporting” [“Passporting significa que um
banco britânico pode prover serviços em toda a UE, a partir de sua sede na
Grã-Bretanha. Importante, também significa que um banco suíço ou norte-americano
pode fazer a mesma coisa de uma filial ou subsidiária estabelecida na
Grã-Bretanha, pela qual os bancos podem vender produtos a todos os 28 membros
da UE, com acesso, assim, a uma economia integrada de $19 trilhões”
(de Dlapiper, NTs)]. Basta ter quartel-general em Londres e alguns
miniescritórios satélites. Passporting entrará em fase de negociação feroz,
assim como o que acontece nos pregões denominados em euro, de Londres.
Acompanhei o Brexit
aqui de Hong Kong – a qual, há 19 anos, teve seu próprio Brexit, quando
realmente deu bye bye ao Império Britânico para ligar-se à China. Pequim está
preocupada, temendo que Brexit venha a se traduzir em fuga de capitais,
“pressões de depreciação” sobre o yuan, e perturbações sobre a gestão da
política monetária do Banco da China.
Brexit pode até afetar
seriamente as relações China-UE, porque Pequim, em tese, pode vir a perder
influência em Bruxelas, sem o apoio britânico. É crucial não esquecer que a
Grã-Bretanha apoiou um pacto de investimento entre China e UE e um estudo
conjunto da viabilidade de um acordo de livre comércio China-UE.
He Weiwen, codiretor do
Centro de Estudos China-EUAUE, sob a Associação Chinesa de Comércio
Internacional, parte do Ministério do Comércio, disse claramente: “A União
Europeia provavelmente adotará abordagem mais protecionista nos negócios com a
China. Quanto a empresas chinesas que instalaram quartéis-generais ou filiais
na Grã-Bretanha, é possível que já não gozem de acesso sem tarifas ao marcado
europeu em geral, depois que a Grã-Bretanha deixar a União Europeia.”
Isso se aplica, por
exemplo, às grandes chinesas de alta tecnologia, como Huawei e Tencent. Entre
2000 e 2015, a Grã-Bretanha era principal destino de investimento chinês
direto, e o segundo maior parceiro comercial da China dentro da UE.
Mas também pode acabar
por reverter em ganha-ganha para a China. Alemanha, França e Luxemburgo – todos
competindo com Londres pelos sumarentos negócios offshore em yuan –
aumentarão seu papel. Chen Long, economista do Banco de Dongguan, está
confiante de que “o continente europeu, especialmente países da Europa Central
e Oriental, se envolverão mais ativamente nos programas chineses de “Um
Cinturão, Uma Estrada” [também chamados “Novas Rotas da Seda” (NTs)].
A Grã-Bretanha, assim,
viraria a nova Noruega? É possível. A Noruega deu-se muito bem depois de
rejeitar a inclusão na União Europeia, em referendo de 1995. Será estrada longa
e sinuosa, antes de o Artigo 50 ser invocado e lançar-se uma negociação de dois
anos entre Reino Unido e União Europeia sobre território ainda não mapeado.
Alistair Darling, ex-chanceler britânico do Exchequer, resumiu tudo: “Ninguém
tem ideia do que signifique ‘Fora’.
Fonte: http://outraspalavras.net/capa/por-que-nao-vale-chorar-pela-uniao-europeia/
Pepe Escobar, Grã-Bretanha, União Europeia,
Artigo 50, Brexit, derrotou City de Londres, FMI, Wall Street, Fed, Banco
Central Europeu, European Central Bank, Bruxelas
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